Introdução

Etnografar o espaço público é deparar-se com as surpresas do vivido. Pequenas cenas do cotidiano se apresentam ao olhar do pesquisador/flaneur que perambula pelas ruas, e a ligação entre esses momentos, entre estas cenas, conduz a uma idéia de “acontecimento” (Maffesoli, 1996). Talvez fascinação pelo Centro de uma grande cidade, talvez satisfação por aprender mais sobre o teatro da vida urbana (Rocha, 1995), ao “estar lá”. A cada saída de campo a estudante de antropologia percorre pelas disposições dos elementos principais da construção desta etnografia sonora nas ruas da cidade de Porto Alegre. Não há como negar a profusão de sonoridades dos encontros entre pessoas, dos objetos e utensílios que compõem os gestos humanos, os devaneios criados pela mistura desses sons que levam a imaginar a cidade como uma máquina ligada. Penetro na Rua Voluntários da Pátria, na capital do Rio Grande do Sul - Brasil - com a intenção desvendar as minúcias desses pequenos sons que se dão através da interação de diversos seres.


Mapa da região da Rua Voluntários da Pátria e representação em amarelo da densidade sonora estudada.
       
 

Caminho por nuances sonoras de uma rua habitada:
Vendedores ambulantes e seus rastros perseguidos.

Através do estudo do cotidiano dos trabalhadores ambulantes na Rua Voluntários da Pátria, em Porto Alegre – Brasil, pretende-se mapear suas expressões sonoras no encontro com outras sonoridades do espaço público. A sugestão é um passeio imagético por cantos, pontos, e devaneios no Centro da cidade que traçam vínculos, redes sociais, formas de convívio e insinuam práticas e fazeres dos ocupantes dessa região. Jocosidades, vendas, interação com a pesquisadora constituem cenas do “estar lá”, convido a entrar por esta rua afim de poetizar.

Palavras-chave: Etnografia, antropologia urbana, imaginário, trabalho informal.

Autor:
Priscila Farfan

Graduação em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Banco de Imagens e Efeitos Visuais – BIEV, Porto Alegre, Brasil.

e-mail:
farfanzinha@hotmail.com

Recibido: 15 de Abril 2008    Aceptado: 25 de Mayo 2008


 
 
<<  Ô  >>
119

A “entrada” da rua é um quadro dinâmico, seu ponto de fuga é desenhado pelas linhas em perspectivas do cimentado da rua e das calçadas. As linhas verticais construídas por prédios nos dois lados arranham o céu. No meio da fotografia em que se encontram essas linhas há uma confusão por onde pedestres caminham. Na imagem fotografada há um silêncio que ressuscita a lembrança de como é prolixo passear por ali, nas saídas de campo o mergulho evidente revela pormenores dos ruídos e reconhece um ritmo desse cotidiano que só acontece lá, daquela forma.

Quase um ano e meio de campo na tentativa de captar as intrigas desse lugar. Os trabalhadores ambulantes, apesar de se firmarem em práticas ilegais, habitam esse espaço. Como andarilhos vão para lá e para cá, mas cansam, e se estabelecem em pontos temporários ao negociar com seus pares. Nesse meio de tempo criam laços com outros ambulantes, lojistas, clientes, pedestres que também compõem a atmosfera da rua. Agregam-se, fogem da polícia, mudam de lugar, o que possibilita a re-criação de uma nova ocupação do espaço por esses trabalhadores, muitas vezes na mesma região central da cidade. De alguma forma, permanecem neste movimento, tanto em suas estratégias para vender, como na sua disposição no Centro da cidade, e consequentemente, a densidade sonora daquele espaço é transformado e re-acomodada.

Passeio no túnel imaginado

A rua é uma aventura, e da “entrada” até “lá em baixo”, é cheia de cantos, pontos, ruelas, desvios, encontros e experiências, chego a ver a Rua Voluntários da Pátria como um túnel, e em cada parte mil vivências, mil cenas, mil expressões sonoras. De onde estou, na esquina da rua estudada com a Praça XV, escuto os vendedores de vale transporte, o anunciante da farmácia da esquina, clientes em potenciais se aproximando dos produtos, carros, ônibus, assobios. Aquelas propagandas parecem avançar em cima das pessoas, preenchem o espaço entre um prédio e outro, dissipam nos ouvidos dos passantes ao mesmo tempo em que encontram outros ruídos e colorem o espaço público.

Na Perfumaria e Cosméticos a vendedora fala em voz alta “PODE CHEGAR NA MAIS ECONÔMICA QUE É PREÇO BAIXO NA CERTA!” intimida quem passa a percorrer o ambiente de comércio, afinal quem sabe lá não haja algo de que a pessoa esteja precisando? Então entramos na rua como quem não quer nada... “VALE, VALE, VALE!” e o thic, thic, thic característico dos vendedores de vale transporte lembra das fichas para pegar ônibus que são vendidas no centro. Já tenho as minhas, por isso o som dos vales batendo uns nos outros já não tem a mesma importância.

Não param de “propagandiar”. Na outra esquina é corriqueira a exibição de óculos, as hastes do produto ficam cravadas na mesa, ou melhor, um pedaço de isopor está apoiado num suporte de madeira e assim os diferentes modelos são expostos lado a lado. Óculos para sol, óculos de grau, óculos para se embelezar, os vendedores carregam espelhos para o cliente se olhar, e se gostar, pode levar.

Na confluência das expressões sonoras do comércio formal e informal seguimos pela rua, e mais em frente pode-se ouvir o lojista que bate palma, bem forte, para atrair a atenção de todos. No eco dele, outro recomeça outras palmas em uma loja próxima, a sugestão é de que nesse espaço público haja uma ritmicidade singular com pequenos silêncios e muitas propagandas. É que nas paredes dessa rua têm buracos encravados, são casas abertas, com diversos produtos para vender: roupas, sapatos, comes e bebes, remédios, utensílios, fantasias, promoções, entre outros. Mas não adianta ficar dentro da loja, para propagandiar têm que ir à porta, no encontro com a rua, é lá que os clientes vão passar. Quem tiver a melhor vara, vai pescar.

Está aí o argumento dos camelôs ou mesmo dos ambulantes, uma vez que há vantagens de trabalhar na calçada, na rua, na “pedra”, como eles dizem.

O contato com o comprador tem outro sabor, um olho no olho, uma piadinha, o desconto, um elo de confiança, e produto vendido, cliente satisfeito. Tem até um rapaz que se fantasia com a máscara do “pânico” para atrair as crianças, e dessa maneira ele oferece colares infantis Está tudo na mão, ele fica na calçada em frente ao Mc Donalds, não caminha, pois seus clientes em potenciais é que passam por ali. Então com a fisionomia chamativa da máscara e um pano preto para cobrir o resto do corpo, mostra os colares com motes do imaginário infantil. Os bebês choram, os adultos não olham muito, mas as crianças deliram.

Outra tática presente na criatividade da rua são as bolinhas de sabão que decoram a Voluntários da Pátria em meio a venda de perucas, sorvetes, roupas, quase já na outra esquina, com Rua Vigário José Inácio. Um colorido bonito, pouca pessoas, o rádio ligado, vendedores ambulantes conversando... aquele cinza da rua, contrasta com as cores fortes dos produtos oferecidos. Em meio a isto o vendedor enfatizava a importância do brincar, soltar bolinhas de sabão, ele mesmo vende o suporte para qualquer um fabricar sonhos, um tempo no ar e “ploc”, quanta diversão! Também um segurança nessa esquina observava o movimento. Não sei se ele era da polícia, ou apenas fazia a segurança local, mas não o vi conversando com ninguém, estava bem quieto.

Esse ambiente é um tanto mais silencioso, mais calmo, como visto acima mais propagandas visuais, e algumas audiovisuais. Mas há aquele senhor “COMPRO OURO!”, aquele jovem “CONSERTO DE VÍDEO GAME!”, clientes em potenciais, pedestres, e a aprendiz de antropologia anotando falas, gestos, encontros, situações, cenas. Ela também esbarra no gari, vestido de laranja, que pretende limpar a rua, varre-varre vassourinha, arranha suas cerdas nessas pedras compactadas, retira os vestígios do povo, limpa as porcarias esquecidas jogadas nas calçadas.

Neste trecho da Voluntários da Pátria, do “início” até o “meio” – considerando o “final” próximo ao Terminal Rui Barbosa - ambulantes de CD´s e DVD´s passam, mas não permanecem, se confundem com os circulantes e seus rastros sonoros são passos apressados. Contudo a atenção é desviada para um carrinho de supermercado, que carrega garrafas térmicas com café, leite, refrigerante, suco, chá, às vezes lanches, e o som de suas rodinhas se emaranham com cantos dos pássaros que são vendidos na “Agricultura-Veterinária” do outro lado da rua, é um farfalhar. Na composição de caos urbano, o conjunto de ar condicionado ligado, o aglomerado de pessoas, trânsito agitado, passa um, passa outro, demonstram que a estética através do som modelam as imagens vistas dando mais “vida” ao local.

Mais a frente, a calçada é ocupada por vendedores informais de perfumes, pulseiras para relógios, pilhas, entregadores de panfletos de lojas, entre outros. Do outro lado da rua, percebe-se os gritos “Bruxa do 51”, “¡Ronaldinho!”, era uma mendiga que estava irritada, e com uma vassoura pulava e andava de um lado para o outro conforme as provocações dos ocupantes do espaço público. De certo modo, os espetáculos da rua são constituídos dos próprios personagens circulantes do local. Todos riam, e mexiam: “Dá-lhe, Dá-lhe, Dá-lhe!”. Alguém ainda disse que a bruxa estava solta por que era sexta-feira 13.

O senhor-vendedor - de pulseira e pinos para relógios - da esquina entre a Dr. Flores e a Voluntários canta “A nova loira do tchan é linda deixa ela entrar...”, e para acompanhar o ritmo da sua canção despreocupada, chacoalha uma garrafa com poucas moedas no fundo. A cliente se aproxima, e ele faz uma brincadeira, interage, conversa, investe naquela relação, afoga suas tensões, seus desembaraços e conquista o olhar simpático, o que permite perceber que o bom humor colabora com os negócios. Os laços dão vazão a intimidade e se estabelece a confiança.

120
121
122
123
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Essas cenas têm como palco a própria calçada, desenrolam-se uma atrás da outra. Para um observador atento, é possível até mapear a rede social, pois o vendedor de rua troca dinheiro com outro vendedor, reconhece seus clientes, percorre pela Voluntários da Pátria faceiro, cumprimenta colegas que tem o Centro da cidade como local de passagem, vai ao banheiro no bar, almoça por ali, conversa, ri, passa frio, ganha dinheiro de uns, perde para outros, corre quando a polícia vem graças o aviso de alguém, etc. Ou seja, desfila por esse corredor de maneira nobre, conhecedor dos seus cantos, dos pontos, das suas saídas labirínticas, dos esconderijos, se ouve um assobio mais longo, vê o olhar de um colega, ou mesmo um “griteiro”, o vendedor abraça seus produtos. Caso estiver com cliente pode até deixá-lo sozinho, sai com o andar apressado da Voluntários e dobra a esquina mais próxima.

Menos de dez minutos, e os ambulantes já retomam seus postos “Meu, está ruim de trabalhar ...”, porém esse vai e vem também uma proteção. Pois se abordado pela polícia, os produtos são apreendidos, o ganha pão fica na mão “dos brigadiano”, ” , o vendedor é logo liberado, e tem que re-começar sua trajetória na rua novamente. “Caminhando e cantando e seguindo a canção...” eé o que toca rádio, um paradoxo sobre os dilemas brasileiros.


“FALA MANO! CD, DVD.... CD, DVD! BARATO CDÊ, BARATO DVDÊ!”. Seguimos nosso itinerário na rua até esse pedaço, entre a esquina da Dr. Flores e Sr.Dos Passos com a Voluntários da Pátria, tinha alguns ambulantes que se arriscavam a ficar, meio despercebidos, meio quietos, mas a exibição dos seus produtos denunciava a prática. São duas telas de aço em formato de quadrado, mais ou menos um metro por um metro, em que duas retas de cada quadrados eram juntadas por elásticos, e ao apoiar no chão essa armação forma uma espécie de triângulo em que a base é a calçada. Nas telas os CD´s e DVD´s, embalados num saquinho plástico com uma capa sobre o conteúdo, estão presos por elásticos, essa armação é leve - até por que “na hora do rapa tem que pinotear”, põe tudo debaixo dos braços e sai num trote - por isso quando os ventos estão mais fortes nesse túnel é comum ouvir o “plaft” do material estatelando no chão. .

Eles se ajudam, o vendedor ergue, a armação colabora, levanta-se a vitrine e a magia continua “HOMEM ARANHA DUBLADO, VAMOS QUE EU QUERO GANHAR MAIS DINHEIRO!”. Resquícios das conversas entre eles deixam escapar as estratégias de vender na rua, não podem perder a venda, tem de enfatizar a qualidade do produto, e também comercializar conforme o câmbio estabelecido pelos colegas, um preço que não chega a 10 reais, cabe a negociação. Um barulho do motor explicita um carro que vem diminuindo a velocidade para virar a esquerda, cumprimenta em tom de piada o colega que atravessa a Rua Sr. Dos Passos.

Seguindo adiante, já do outro lado da rua, chega-se ao lugar tão explorado nas saídas de campo, ao local em que os informantes adotam a pesquisadora, assim como ela os observa e anota em seu bloco de anotações - sentada em degraus das portas de lojas voltada para a calçada – seus gestos, performances e “artes de fazer” (DE CERTEAU, 1994). Eles estão aos montes na calçada, antes do período de mais conflito com a SMIC - em outubro de 2007 -, umas vinte telas constituindo bancas ficavam lado a lado, com seu(s) “dono(s)” ao redor, a aprendiz estava perto deles, mas havia diferença no estar entre eles.

Um metro de distância e pouco se podia ouvir as conversas, as piadas, os comentários entres vendedores de rua, as interações de suas vendas, perceber seu estilo de vida. Entretanto através dos sons, falas altas, movimentações, correrias, era possível compreender um pouco mais sobre o comércio informal. Depois de cristalizar as idas, os contatos com os informantes se tornaram mais corriqueiros, um pedia o lápis emprestado, outro perguntava o que tanto era anotado, e tiveram aqueles que me apresentei como estudante depois de perceber olhares desconfiados. “Já anotou tudo o que queria? Se quiser saber mais, pode perguntar!”. E assim a troca se desenrolou de forma menos fugaz, afim de constituir vínculos entre pesquisador-pesquisado.

Dentro o grupo de trabalhadores ilegais etnografados, alguns demonstraram mais simpatia no contato, mas há bastante desconfiança em relação a pessoa que os observa, pois alguns profissionais querem destacar essa tribo urbana de forma depreciativa. Eles estão atentos, notam todos e tudo, a sensibilidade de um ambulante ao movimento e ao som é evidente. Porque é desta maneira que eles sabem como e onde se dispor na Voluntários da Pátria, tem locais mais ameaçadores do que outros, uns com mais assobios, outros mais silenciosos. Mesmo contrário aos gostos da SMIC, a prática social pesquisada não podia ser negada, o tensão existe, mas a propaganda é ecoada, ouvida, e consentida pelos clientes. Talvez o Centro da cidade “permita” a confluência de interesses, de forma ilegal ou não, esse espaço sugere oportunidade para os que não se adequaram as regras do mercado formal.

Os vendedores de CD´s e DVD´s são jovens entre 18 e 35 anos, com algumas exceções, moradores de região periférica de Porto Alegre, aquele que propagandeiam tem voz forte, jovem, enunciativa. 20% são mulheres, entre a mesma faixa etária, se arrumam bem, utilizam roupas justas, usam maquiagem, e não as vi ecoando suas vozes em favor do que vendem. Também os rapazes se preocupam com o visual, gel no cabelo, tênis bacana, e uma mochila/mala para carregar os produtos, o que faz pensar nos momentos de paquera possíveis devido essa “boa aparência”.

Cenário composto por cenas

“PROMOÇÃO DO DVD AQUI OH!” era fenômeno acústico que vinha mais a esquerda de um rapaz moreno claro, com boné, bermuda, e blusa erguida na altura do umbigo. A moça loira se abana com um papel, está calor, e conversa com mais dois rapazes, parecem colegas. O jovem da minha esquerda está acompanhado por um moço de blusa azul, cabelo castanho na altura do ombro escondido por um boné virado pra trás que me olha algumas vezes, e a todo o momento se aproxima um senhor mais gordo com voz grossa que grita “DVD, CD” e bate palma, eles estão com duas bancas. Uma longa buzina, o trânsito de ônibus por ali é intenso - porque do outro lado da rua tem o Terminal de ônibus Rui Barbosa - e de pedestres também, estes últimos vão para todos os lugares, da direita pra esquerda, da esquerda pra direta, andam, param, conversam. Ainda nessa calçada, do lado da galeria de lojas um rapaz oferece a quem passa o cartão ItauCard, mas está sem muita sorte.

124
125
126
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Não é isso! Ela quer o filme, eu acho.
Ambulante: Esse é o novo que chegou aqui pra nós.
Cliente: Pára, vamos tirar essa dúvida. (procura pelo celular na bolsa)
Ambulante: Então vamos ver agora.
Cliente: Vou te falar. Minha irmã mandou comprar umas coisas que eu não sei...
Ambulante: Tropa de elite? Eu tenho o um, o dois, o três e o quatro....
Cliente: São quatro filmes? (irmã atende o celular) Oh lagartixa, o High School só tem o tal de show, por que eu procurei isso aqui inteiro e ninguém tem... só tem um tal.... É uma capa vermelha que está tudo mundo... é isso mesmo! Ta, mas esse é o filme? E isso ai serve?Ta bom, beijo, tchau. (desliga o celular) Serve esse...
Ambulante: Vou botar meu selinho...
Cliente: Ta quanto que é?
Ambulante: Cinco reais...
Cliente: Ta, qualquer coisa eu te trago de volta.
Ambulante: O selo de garantia, Ambulante DVD!
Cliente: Tu ficas aonde? Bom , se bem que tem seu telefone aí...
Ambulante: Telefone não amiga...
Cliente: Aqui tem o telefone, não tem?
Ambulante: Não.
Cliente: Ah não. Tu ficas sempre aqui?
Ambulante: Só trabalho aqui.
Cliente: Ta, ta bom, obrigada...

A troca do dinheiro acontece, ele põe um selo com nome para caso dê algum problema na hora de assistir ela possa trocar. Mas é evidente que este selo, de garantia talvez, garante pouco, pois os ambulantes não tem locais fixos, apesar de rodearem a mesmo região da Voluntários da Pátria, por outro lado entre a rede social deles o nome de cada é conhecido, se a pessoa procurar por fulano os colegas sabem onde ele está. Por isso podemos dizer que a estratégia para adquirir confiança do cliente esteja nesses momentos, além da negociação de falas, preços, e gestos no encontro entre vendedor e comprador.

No fim do túnel

“DVD”, “Abaixou aqui!”, “Compro, vendo e desbloqueio celular!” e essa confluência de vozes me instigou a pensar uma voz que parece puxar a outra, compassar um ritmo próprio desta rua. Ao mesmo tempo em que a informalidade se aproveita das táticas do mercado formal, este último também copia idéias para atrair a freguesia. Não só ficam nas portas das lojas falando de suas promoções como entregam panfletos no espaço público, ou seja, contribuem com emissão de sons dentro do túnel imaginado.




Outro contexto em que vendedores de CD´s e DVD´s aproveitam, e mais uma vez por isso são criticado é em relação à publicidade dos seus produtos. Muitas vezes quando o filme é lançado no cinema, os “pirateiros” já têm o produto pra ser vendido na rua, ou seja, no outdoor está a propaganda, e nas ruas do Centro os ambulantes reforçam o enredo com suas palavras e anúncios, conquistando o freguês a ver em primeira mão. Isso também acontece com CD´s de música, mas além dos lançamentos, eles têm produtos mais antigos.

Na maioria das vezes são cantores populares, do estilo de música sertaneja, pagode, samba, pop, rock, funk. Um dos informantes desta investigação etnográfica que só trabalha com estes CD´S, na exibição dos seus produtos mistura diferentes tipos de música para que o cliente tenha a oportunidade de perpassar os olhos pela variedade que é oferecida. Assim o freguês quer um CD específico, mas ao ver outro que lhe interessa acaba comprando pelo preço mais barato do que no mercado formal, mais uma vez táticas.

Talvez a cena de venda mais emblemática que pude presenciar ao longo do trabalho em campo foi justamente no dia em que fiz a captação de som com md na Rua Voluntários da Pátria, baseada na produção sobre etnografia sonora desenvolvida no BIEV através do trabalho de bolsa de iniciação científica que permite a pesquisa. Foi a seguinte: uma senhora de uns 35 anos procura pelo DVD do High School Music II, chega rápido num dos ambulantes de que estou próxima, pergunta pelo produto:

Cliente: Moço, tu tem High Schoo Music II?
Ambulante: Tem o show!
Cliente: Ah não, pára que isso pra mim é novidade. Que show?
Ambulante: O show deles, ué.
Cliente: Que o show? Não é o filme que apareceu na televisão?
Ambulante: É o novo deles ali, o show.
Cliente: Sim, mas eu... não sei, não me fala grego... (o ambulante mostra o dvd).

“AMBULANTEEEE”, e se escuta um “tek!”, são os triângulos, que constituem as chamadas bancas, virando retas, os mais da esquinas já se preparam para correr, e olham em direção a Praça Oswaldo Cruz, pois é de lá que vem o perigo. A densidade sonora desse arranjo social se mobiliza e preenche o espaço público, os vendedores criam pontos imaginários para se estabeleceram e re-criam sua forma em outro canto. Se acomodam para durar, através de sua forma de trabalho, ao cotidiano da rua. É nesse vai e vem, que as cenas se parecem efêmeras, rápidas, mas a freqüência torna parte do estilo de vida dos ambulantes, e estuda-los é um desafio posto.

O dia-a-dia é puxado, de segunda à sábado chegam de manhã e ficam até a o fim da tarde, no sol da primavera, na chuva de outono, no frio do inverno, e a incerteza do dinheiro a ser ganhado é tratado com angústia, pois trata-se de indivíduos vindos da classe popular que se participa dessa vivência do presente. Tem semana que ganha um dinheirinho, tem outra que não. “FALA AMIGA!”. Escuto um deles bocejar, o outro me olha. Alguns dos passatempos desses vendedores são as conversas, leituras do Diário Gaúcho, cantos descontraídos, a paquera. Escuto as freadas de ônibus, pois as curvas para entrar no terminal são bem fechadas dependendo da aonde o motorista vai.

Logo após passa uma negra alta, com chapinha no cabelo negro, creio que era um travesti e escuto desses meninos dos óculos “Uhhhhhhhh!”, eles riem, essas brincadeiras também constituem cenas cotidianas. Eles reparam nas mulheres bonitas que passam, um cutuca o outro para apreciar. Assim como partilham esses momentos, também dividem uma garrafa de refrigerante, trajetórias sociais e a memória do lugar. Escuto muitas sonoridades ali próximo do Terminal Rui Barbosa, debaixo da marquise, uma música da rádio tocada por alguma loja, conversas fugidias, risos, gritos, propagandas, clientes admiram produtos, vozes, caminhadas tão ouvinte de outras caminhadas, constituem a melodia da rua.

Porto Alegre divide seus cidadãos pelos gostos em dois times de futebol, o Internacional e o Grêmio, no espaço público o reflexo desse macrocosmo, se reflete no microcosmo, ouve-se hinos “Até a pé nos iremos...”, idolatrias “Inter, Inter”, além dos usos das camisas desses campeões. Os ambulantes também têm seu time, em época de jogos mais acirrados é comum um zombar do outro, “Teu time já era...”. Um dos ambulantes simula estar com um microfone e pergunta para o outro qual vai ser o resultado dessa noite, a resposta do placar deixa claro que Internacional vai ganhar, e a aprendiz de antropóloga imita uma câmera com a mão a fim de participar da relação.

129
128
127
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Um planejamento urbano que centraliza seu comércio, bancos, funções administrativas, terminais de ônibus, áreas culturais, entre outros num ponto da cidade possibilita um aglutinação de pessoas de grande número por dia, e o resultado é um experiência um tanto quanto barulhenta. Essa é a perspectiva de alguns circulantes da região da Voluntários da Pátria, mais enfaticamente o jornal dá sua narrativa:

“ “Carros em lugar proibido, pedestres atravessando fora da faixa, pessoas caminhando muito devagar, outras correndo contra o relógio. Moradores de rua dormindo nas calçadas, enquanto vendedores oferecem em voz alta “fábrica de calcinhas”, “corte de cabelo” e “Shrek dublado em DVD”. Aos gritos, acrescentam-se buzinas e xingamentos no trânsito. Bem-vindo ao Centro, um rali com direito a trilha sonora caótica”.

Entretanto para Antropologia Urbana, Sonora e Visual esse cenário possibilita o estudo da cidade através suas expressões imagéticas de uma forma bem interessante. Pois a etnografia na rua Voluntários da Pátria, adverte para a cidade como objeto temporal (ECKERT;ROCHA, 2005) em que a multiplicidade de cenas pode ser estudas em suas minúcias afim de desvendar os estilos de vida desse trabalhadores ambulantes. Assim como em Porto Alegre, em outros locais no Brasil o mercado informal também se estende, alguns letristas de música brasileira enfatizam suas aparições e, diferentemente do caos escutado por aqueles, transformam em melodia algumas das táticas dessa profissão urbana:

“Com quantos reais se faz uma realidade
Preciso muito sonho pra sobreviver em uma cidade
Grande jogo de cintura
Entre estar esperto e ser honesto
Há um resto que não é pouca bobagem”.
130
<<  Ô  >>

Rocha, Ana Luiza Carvalho da. 1995. Irracionalidade do belo e a estética urbana no Brasil. In. Território do Cotidiano: uma introdução a novos olhares/organizado por Zilá Mesquita e Carlos Rodrigues Brandão. Ed. Da Universidade/UFRGS/Ed. Da Universidade de Santa Cruz do Sul/UNISC. Porto Alegre/ Santa Cruz do Sul.

Rocha, Ana Luiza Carvalho da. Vedana, Viviane. 2007. A representação imaginal, os dados sensíveis e os jogos da memória: os desafios do campo de uma etnografia sonora. In: Anais do VII Congresso de Antropologia do Mercosul (VII-RAM), CD-ROOM, Porto Alegre.

Vedana, Viviane. 2008. No Mercado tem tudo que a boca come. Estudo Antropológico da duração das práticas de mercado de rua no mundo urbnano contemporâneo. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRGS, Orientador: Cornelia Eckert.

 

5. Menciona o jogador de futebol brasileiro, o Ronaldinho, que também é caricaturado em relação a sua beleza.
6. Sexta-feira 13 de qualquer mês é considerada, popularmente, dia de azar. Razões históricas mantêm a superstição de que a bruxa a está solta neste dia, e deve-se tomar cuidado com as atitudes.
7. Música “A nova loira do tchan” do Grupo “É o Tchan!”, banda brasileira.
8. Brigada Militar, que em ação com a SMIC (Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio) pressiona para que o comércio ilegal nas ruas do centro de Porto Alegre seja eliminado.
9. Canção de Geraldo Vandré de 1968 que simboliza a crítica a ditadura militar.
10. Rocha, A. L. C.; Vedana, V. . A representação imaginal, os dados sensíveis e os jogos da memória: os desafios do campo de uma etnografia sonora. In: VII Reunião de Antropologia Mercosul, 2007, Porto Alegre. VII RAM Desafios Antropológicos. Porto Alegre : UFRGS, 2007. Vedana, Viviane. Sonoridades da Duração: práticas cotidianas de mercado no mundo urbano contemporâneo. In: VII Reunião de Antropologia do Mercosul – Desafios Antropológicos, 2007, Porto Alegre.
11. No Banco de Imagens e Efeitos Visuais – PPGAS/UFRGS, têm-se reuniões semanais sobre como pesquisar a cidade através do som, com a orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha e participação de Viviane Vedana e Priscila Farfan.
12. Bolsa de iniciação científica cedida pela FAPERGS pelo projeto do Banco de Imagens e Efeitos Visuais/ BIEV “Coleções Etnográficas e patrimônio em Porto Alegre” com orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
13. Zero Hora Centro, edição de setembro de 2007.

Bibliografía

Eckert, C; Rocha, A L. C. 2005. A interioridade da experiência temporal como condição da produção etnográfica. O Tempo e a Cidade. Editora da UFRGS. Porto Alegre.

de Certeau, M. 1994. A invenção do cotidiano:1, Artes de fazer. Vozes. Petrópolis.

Geertz, Clifford. 2002. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Editora UFRJ. Rio de Janeiro.

Machado, Rosana Pinheiro. (Rocha, Ana Luiza Carvalho da – orientação). 2004. Identidades, conflitos e redes sociais entre camelôs: uma perspectiva etnográfica. Banco de Imagens e Efeitos Visuais, PPGAS/UFRGS, (33f. – Iluminuras; n. 24). Porto Alegre.

Maffesoli, Michael. 1996. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpern Gurovitz. Vozes.
Petrópolis, RJ.


Esta é a visão do artista Pedro Luís e a Parede, no entanto outros como João Bosco e Aldir Blanc, Chico Science, Los Hermanos, Arnaldo Antunes e Caju & Castanha cantam as condições de vida dos camelôs que permeiam nesse ambiente citadino. A diferença entre camelôs e ambulantes é evidente na hora que chega a fiscalização da SMIC, os segundo saem correndo adotando a condição “fora da lei”, enquanto os primeiros ficam onde estão aproveitando da sua situação privilegiada.

Entretanto esse texto dá ênfase em relação a experiência sensível de acompanhar vendedores do comércio informal no Centro da cidade até outubro de 2007, depois dessa data a SMIC intensificou suas ações, e os ambulantes articularam novas estratégias para “estar lá”. Um dos motivos foi a repercussão de que o filme brasileiro Tropa de Elite, de José Padilha, já estava nas mãos dos “pirateiros” antes mesmo de ser exibido nos cinemas. Outro motivo é a proposta governamental de encaminhar e regularizar todos os camelôs para o Centro Popular de Compras, que será construído no local em cima do Terminal Rui Barbosa, e retirar os ambulantes da proximidade, afinal são ilegais. Não se sabe o que vai acontecer realmente, cabe a pesquisa continuada.


Podemos concluir, que a dinâmica do cotidiano pode ser estudada através das expressões sonoras de um arranjo social. E enquanto durar os rastros de uma forma constituintes de práticas e fazeres como o comércio informal é possível se conhecer a cidade, as vivências e vínculos que permeiam a Voluntários da Pátria.

Notas

1. Os vales transportes são fichas que correspondem ao valor da passagem de ônibus em Porto Alegre, e que são compradas em posto autorizado pelo sistema de transporte da cidade. Mas o comércio informal também disponibiliza essas fichas.
2. Essa é a sugestão de onomatopéia que representa o som do chacoalhar dos saquinhos plásticos contendo os vales transportes, com uma quantia de 75 fichas de plástico, balançado pelos vendedores.
3.
Trata-se do filme “Pânico” do diretor Wes Craven, em que o serial killer assusta suas vítimas com uma máscara característica e seus atos violentos. Esse filme fez bastante sucesso no Brasil, e a fantasia do “pânico” é usada para chamar a atenção, brincar com esse imaginário do mistério.
4. Referência à personagem Dona Clotilde, apelidada como bruxa do apartamento 51, do seriado Mexicano “Chaves” que é transmitida pelo canal SBT (Sistema Brasileiro de Televisão). Essa senhora pratica ações misteriosas dentro de sua casa, tem um gato preto, tem uma vassoura, e é esteticamente considerada feia e assustadora pelos outros personagens do programa.

133
132
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
131