Yara Schreiber Dines

“E se a fotografia pertencesse a um mundo que ainda tivesse alguma sensibilidade ao mito, não deixaríamos de exultar diante da riqueza do símbolo: o corpo amado é imortalizado pela mediação de um metal precioso, a prata (monumento e luxo); ao que acrescentaríamos a idéia de que esse metal, como todos os metais da Alquimia, está vivo”.
(R. Barthes)


Introdução

Fotos de migrantes nordestinos em diversas condições de conservação. Registros visuais pontuando o trasladar de uma cidade interiorana da Bahia, para a metrópole. Valores afetivos atribuídos à retratos de família que efetuam o elo entre o passado e o presente em construção, procurando restabelecer as conexões de sentido com a realidade atual. Estas são algumas das características detectadas ao se ter acesso ao álbum de família de um núcleo de migrantes que preserva a sua memória, dando-lhe uma carga intensa de significados.

Este artigo aborda as formas de compreensão de uma família de migrantes sobre o seu álbum de retratos, procurando enfocar o entendimento e relevância  deste  álbum   para    os seus integrantes, no intuito de captar os significados desta história de família e de sua trajetória através das imagens.

 
Para se entender melhor o valor e o significado atribuído à estes retratos, buscou-se partir do ponto de vista e testemunho sobre as imagens pelo grupo de migrantes, procurando compreender a sua representação social e os sentidos relacionados à memória do núcleo familiar e individual.

Detalhando a análise em relação à estas dimensões, como enfatiza Walter Benjamin , busca-se averiguar também como se configuram o valor de culto e de exibição, associados à especificidade do suporte fotográfico, ao seu uso e formas de apropriação, neste caso relacionado aos retratos deste grupo de migrantes.

 



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Um outro álbum de família: retratos de migrantes.


O objetivo deste artigo é analisar as representações de uma família de migrantes sobre o
seu álbum de retratos e o sentido que esses retratos adquirem ao serem expostos em locais de destaque no espaço doméstico, passando a possuir um aspecto de consagração e mesmo mítico. Acompanha-se a trajetória da família em seu deslocamento de Irecê, cidade do interior baiano, para a metrópole paulistana, através dos retratos do álbum, que mostram não somente a representação da família neste migrar de costumes, de hábitos e de valores, mas também o migrar do olhar para bens e marcas da ascensão social no novo meio urbano, que ficam registrados através da fotografia e assim caracterizam esta história de família.
Palavras-Chaves: retrato de família, migrante, fotografia e memória.




Autor: Yara Schreiber Dines
Doutoranda em Antropologia Social. Grupo de Antropologia Visual - GRAVI/USP.
e -mail: yara_schreiber@uol.com.br






Revista Chilena de Antropología Visual - número 4 - Santiago, julio 2004 -
138/156 pp. - ISSN 0718-876x.
Rev. chil. antropol. vis.



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Entrando em contato com o Álbum de Fotografias da Família Fontes Lima , conhecendo a sua trajetória e processo de migração, a pesquisadora envolveu-se com a especificidade de sua narrativa visual e com a particularidade da seleção de fotografias expostas, construindo e compondo a história desta unidade familiar.

Visualizando as imagens do álbum e através dos depoimentos dos integrantes deste núcleo foram se tecendo as suas passagens e ciclos de vida -desde a formação do casal, incluindo o enlace, surgimento de seus descendentes e migração para a metrópole- marcados por um olhar fotográfíco bastante singular, conservados neste livro de rememoração da família.

Trata-se de uma família de migrantes, que, neste caso, vêm acompanhada de sua memória e história de vida guardada nos retratos que preserva e irá avolumar-se através dos registros constantes na nova moradia na periferia de São Paulo, no Jardim Bonfiglioli.


 

Este álbum envolve algumas peculiaridades em sua história e narrativa visual. Pois não evoca somente passagens positivas e felizes da trajetória deste grupo de migrantes compondo o seu imaginário. O seu uso incluí momentos de exibição da memória e da coesão social da família, mas também o seu contrário, como fases de doença e de sofrimento.

Através do desenrolar da memória oral de sua guardiã, descobre-se que Jeanne Magali de Lima Fontes, a mãe da família, já chegou a perder a posse do álbum, conservado por sua mãe, para refazê-lo em um momento mais feliz de sua vida conjugal. Pois chegou a utilizá-lo para agredir fisicamente o seu esposo. Ou seja, o álbum já foi manipulado como um interdito para este tipo de bem - usado como forma de destruição simbólica da memória de seus laços matrimoniais e afetivos mais relevantes.

Susan Sontag ressalta (1986) que a fotografia é uma arma, devido ao fato do fotógrafo “roubar” ou “violar” as imagens.

Este é como o caçador que saí a campo ”capturando” e regressando com massas de animais abatidos - registros extraídos da vida social. No caso do núcleo familiar em estudo, o álbum de família configurou-se efetivamente como uma arma não somente no sentido simbólico, mas empírico, as imagens da história da família foram violadas.

Em função do uso citado, este álbum fotográfico quando chegou às mãos da pesquisadora ainda trazia as marcas desta fase. Estava desmanchado, apresentando as folhas soltas, assim trazendo visualmente os sinais de sua histórias. Desta maneira o contato da família com as imagens e comentários feitos, além dos depoimentos realizados, constituiu-se em uma fase de retorno à sua história, efetuando-se um processo de releitura e reapropriação do álbum pela família.

Cada família constrói uma crônica de si mesma através da fotografia, compondo uma série portátil de imagens que testemunha a sua coesão e criando uma suspensão temporal dos conflitos em sua história.

 
Trata-se de um rito familiar em que o núcleo busca restabelecer simbolicamente a sua precária continuidade - sendo esta a passagem vivenciada pela família Lima Fontes.

O álbum de retratos, considerado como um bem de destaque na história e no espaço doméstico da família, expressa um conjunto de valores, normas e regras sociais, que forma uma determinada imagem exibida socialmente. Destaca-se entretanto que, de acordo com a origem social dos produtores deste bem, vêm à tona visões e referências específicas, sendo expostos padrões de comportamento não vistos usualmente neste tipo de registro histórico, como é o caso neste objeto de estudo, que não expõe somente situações felizes da família no cotidiano, mas também aspectos sombrios.

Comenta-se assim a noção de sistemas de gostos, que estão muito ligados ao nível de instrução e também à camada social.


Desta maneira como afirma Pierre Bourdieu (1979) quando há o desconhecimento de normas objetivas na arte, como no caso da fotografia, vinga um “ethos” de classe, enquanto um conjunto de valores que organiza inclusive o seu olhar.

Neste sentido, como ressalta este autor, a fotografia oferece uma ocasião excepcional para entender a lógica da representação e da estética popular. Esta desperta menos o receio por práticas e obras amplamente reconhecidas, como é o caso na pintura, por exemplo.

Para se entender então as formas de representação social dos Lima Fontes, vejamos a seguir imagens selecionadas da memória deste núcleo familiar, que buscam apresentar momentos marcantes de sua trajetória.

 



 

Sob os Retratos de Família

Na foto 1, vemos Jeanne, a guardiã do álbum, à esquerda junto com sua mãe e irmãos em Irecê, Bahia, em 1973. Destaca-se que este retrato de família, compõe um modelo clássico deste gênero de imagem, sendo que a mãe está sentada, cercada por seus filhos. A menina, que parece desconfiada da presença do fotógrafo, iria se transformar numa pessoa apaixonada pela fotografia.
As fotos 2 e 3 destacam a fase do namoro de Jeanne e Valmir, quando de acordo com o depoimento de Valmir, o marido, “a gente gastava bastante tempo juntos”.

Estas fotos guardam lembranças do período anterior ao casamento quando se consideravam jovens, podiam dispor de tempo para se encontrar e compartilhar o seu afeto, além de usufruírem de liberdade individual e de passear.

Jeanne e Valmir valorizam bastante esta época, quando ainda não tinham filhos, e tinham o controle do seu tempo, sendo considerado um dos períodos mais positivo de suas vidas, eram jovens, livres, com vigor físico – e, ainda não tinham as obrigações e deveres familiares.

Na Foto 2 Jeanne aparece transpirando liberdade, ao passear no meio de uma rua de sua cidade, por sua vez, a imagem de Valmir destaca a sua formação educacional, ao mostrá-lo na frente da fachada da escola que frequentava.

Apesar das poucas imagens desta fase no álbum evidenciou-se a sua relevância nas histórias de vida pessoais, nos depoimentos. Ambos se detiveram nestas imagens, manifestando saudades desta época.

 

A relação do casal também estava no começo e carregada de expectativas de um porvir promissor.

 


No álbum, os retratos de casamento formam a série mais abrangente. O que não é de se estranhar, pois como enfatiza Miriam Moreira Leite (1993), para as mulheres o casamento é um evento memorável em suas vidas ”não por causa do novo marido, ou pelo começo de uma família, mas pela demonstração de sucesso, de que sua vida estava andando, progredindo.”

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Neste conjunto de imagens (Fotos 4, 5, 6 e 7) constatamos alguns indícios de regras e padrões sociais dos fotografados, aparentes nas fotos do casamento. Na foto 4 vemos a noiva, logo após a oficialização da cerimônia, olhando diretamente para a câmera enquanto beija o noivo.

Numa atitude de controle e de quebra de regras convencionais do ato fotográfico neste tipo de cerimônia, Jeanne manifesta uma busca de perfeição da ação do fotógrafo contratado e de construção da imagem do enlace, ainda que isto implique em dubiedade de sua inserção no romantismo da cena. No dia do seu casamento nada pode sair errado.

Na foto 5 destaca-se um dos símbolos do casamento - os braços entrelaçados - segurando taças com espumante, retratando a união do casal. Também é interessante reparar em suas vestimentas. Ambos vestem branco, simbolizando pureza e castidade. A noiva, porém não faz uso do véu, que indica a virgindade a ser descoberta pelo marido, mas uma tiara branca.

 

O cenário retratado, em que os casal está com os braços entrelaçados, aparece repetido em outras imagens da festa de casamento, indicando que a noiva escolheu o local das fotos, preparou os doces e decorou a mesa. Apesar do espaço limitado da casa da tia, percebe-se uma necessidade de se apresentar o melhor ângulo e objetos (caixas de som, copos de cristais, toalha rendada, estantes), representando o anseio de ascensão social e a esperança que isso suceda com o casamento.

Na foto 6, vê-se mais um clássico da fotografia de casamento. Orientada pelo fotógrafo contratado, Jeanne posa na frente do espelho, vivenciando a experiência de duplicação da imagem almejada de regozijo com o casamento (Morin, 1970). Na penteadeira, nota-se a caixinha de música, com uma ilustração nostálgica em sua tampa, trazendo à tona o reforço de uma visão romântica de mulher.

 

Como destaca Morin o duplo concentra em si e como se aí se realizassem todas as carências do indivíduo e, em primeiro lugar, o seu anseio mais loucamente subjetivo: a imortalidade. “Cada um vive acompanhado do seu próprio duplo...” . Podendo-se inferir que o mundo das imagens desdobra incessantemente a vida, logo a imagem e o duplo são modelos recíprocos um do outro, como se vê no retrato de Jeanne na frente do espelho.

Na foto seguinte, o casal aparece na foto clássica do beijo na festa, no quarto da tia, posando sobre a cama rendada, com uma imagem de Cristo atrás. Novamente, Jeanne quer controlar o ato fotográfico, de tal modo que posa para o beijo, mas, ao mesmo tempo, observa o fotógrafo registrando a felicidade do casal, garantindo a conservação desta imagem.

Esta foto reforça o depoimento do casal sobre o anseio por um espaço de intimidade, que parece se justapor ao tempo da festa. No seu depoimento, Jeanne enfatiza: “a festa estava muito boa, mas estava mais ansiosa pela lua de mel”.

 

Já Valmir ressalta em relação à esta foto; “tirei a gravata, tirei tudo”. Na foto clássica do beijo, já parecem estar antecipando a relação mais íntima do casal na lua de mel, abençoados pela imagem de Cristo.

Para Miriam Moreira Leite (1993) o casamento atua “como um dos principais ritos de passagem, o casamento encontra-se em quase todas as sociedades e simboliza uma alteracão irreversível da situação social do casal que, proveniente de duas famílias ou de dois ramos de família, une-se para formar uma terceira”. Deste modo, “o retrato de casamento passa a construir a memória da família, fixando lembranças da crônica oral e registrando para os descendentes o grande evento matricial.”

A Foto 8 inaugura uma outra série de fotografias que poderia ser vista como cotidiano na Bahia. Esta fase inicia uma novo marco na vida de Jeanne e Valmir, quando passam a constituir família.

 


O casal quis registrar o batismo de Vanessa, a filha mais velha, para conservar a imagem deste ritual inaugural na sua vida de casal. Nesta época, como afirma Valmir “a gente estava comemorando tudo”. Assim o ritual incluí-se nesta fase comemorativa, de reafirmação dos compromissos assumidos e repleta de novidades. As fotos seguintes apresentam os ascendentes do casal - Antônio, pai de Valmir e Raimunda, mãe de Jeanne. Estas são algumas das únicas fotos de seus pais encontradas no álbum.
 

As fotos de Jeanne, que aparecem a partir desta série, privilegiam a trajetória de formação de sua família direta. Busca registrar amadoristicamente com a sua Kodak Instamatic, os vários momentos da história da família, acompanhando o seu cotidiano em ocasiões festivas ou não e destacando as suas filhas.

Jeanne expõe uma fixação pelo registro fotográfico sistemático, procurando acompanhar o fluxo dos acontecimentos da crônica familiar e trazendo o seu testemunho por meio do olhar imagético, seja através da organização e montagem do álbum de família, de sua produção, ou através da exibição das fotos emolduradas no espaço doméstico.

Jacques Le Goff (1984) ressalta que a mãe é a retratista da família, em muitas ocasiões, pois se incumbe do papel de conservar a lembrança e preservar a memória do grupo. Por este motivo, as primeiras máquinas fotográficas vendidas tinham como público alvo as mulheres.

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Esta série de imagens apresenta aspectos do cotidiano em São Paulo, principalmente, no bairro do Jardim Bonfiglioli, no Butantã, a partir dos anos 90, quando chegam ao novo território a ser conquistado. Abrangem símbolos de prestígio, na dimensão pública, assim como o lidar com a doença, a festa e a vivência em família, na dimensão privada.

 

Na Foto 13, em frente ao quadro negro da escola, no bairro citado, Jeanne está com sua filha Vanessa e uma amiga. O registro visual cria mais uma lembrança para as viagens de Jeanne à sua terra natal, apresentando um símbolo de ascensão social pelo fato da filha freqüentar a escola na cidade grande.

Para Suzana Barretto Ribeiro (1994), este tipo de imagem é de fundamental valor para a quebra de barreiras de preconceitos contra os imigrantes e migrantes, no sentido de exibir formas de melhoria de sua condição social e de integraçào na sociedade.

As Fotos 14 e 16 exibem um tipo de imagem totalmente incomum em álbuns de família, pois mostram imagens de enfermidade, em geral, não registradas para não se fixar fases difíceis, ou seja, são momentos para serem esquecidos. Eventualmente, se esses momentos são registrados ficam guardados para não serem lembrados e não serem mostrados em público.

Ver a foto simboliza um retorno ao passado, a recuperação da memória de um tempo carregado de significados - de um espaço conhecido e permeado de familiaridade. Também representa a conquista da tão sonhada casa própria, ainda que inacabada, realizada nas terras de Irecê - para se sair em busca de sonhos maiores. A casa simboliza uma época em que o casal não vivia muitos conflitos. Posteriormente, em meados dos anos 90, a família se transfere para São Paulo.

Valmir é mecânico, e Jeanne, dona de casa. Buscam alcançar melhores condições de vida neste novo espaço urbano.

É importante destacar que Jeanne envia fotos de suas filhas para a família, sempre que possível, no intuito deles acompanharem seu crescimento. No início do século passado, os imigrantes dirigiam-se aos estúdios fotográficos e se vestiam o melhor que podiam, construindo uma pose, na tentativa de transmitir a impressão de ascensão financeira e social para os parentes distantes, o que muitas vezes não condizia com a realidade.

 

Jeanne também manda estas imagens, visando demonstrar coesão, ascensão e sucesso profissional na metrópole. Segundo Ribeiro (1994), há um desejo de aprovação e amor dos outros através das fotografias.

A imagem seguinte parece já estar indicando o rumo da família para a cidade grande. A Foto 12 mostra Tarciana, a segunda filha, na casa da avó em Salvador, ao lado da televisão, adotando padrões de consumo, divulgados pela TV. Compondo o retrato de um duplo (MORIN: 1970), a menina aparece ao lado da apresentadora Eliana, em seu show, desdobrando a imagem de seu modelo e criando o cenário do real.

Tarciana expõe uma incorporação de valores de consumo disseminados pelos meios de comunicação de massa em sua pose e no porte de óculos escuros, exibindo esta influência no seu comportamento (Morin, 1997). Trata-se de uma exibição e imitação do ídolo com o qual teve mais contato em Salvador.

 

Achava-se que elas detinham o valor emocional da família e seriam mais vulneráveis à idéia de guardar fatos marcantes de seus entes queridos.

Neste caso, Jeanne é a fotógrafa do núcleo familiar, assumindo o papel de fabricar e conservar lembranças e sentimentos. Estas imagens também permitem possuir a situação vivenciada ou almejada tão perto quanto possível, através de sua reprodução (Benjamin, 101).

Para Valmir, a imagem do seu pai no álbum é muito relevante. Trata-se de uma das únicas lembranças dele na Bahia, acompanhado da segunda filha do casal - Tarciana.

Esta foto ainda ganha mais destaque como recordação e evocação da memória, pois não se comunica muito com ele verbalmente, devido ao fato do pai não apreciar as conversas ao telefone.

Já a Foto 10 apresenta como destaque a exibição de bens de consumo na moradia de D. Raimunda - mãe de Jeanne.

 

Como enfatiza Valmir, “a prioridade aqui era mostrar as coisas”, ficando D. Raimunda posicionada ao lado dos bens.

Nesta imagem já aparecem alguns sinais do olhar fotográfico de Jeanne, que busca expor não somente seus laços mais valiosos com a mãe e as filhas, mas também tornar visível a sua condição social. A foto exibe a posse de bens materiais pela família como eletrodomésticos - TV e som - que também indicam a sua conexão com a mídia, os bens de consumo e o mundo exterior.

A Foto 11 mostra a casa em construção pelo pai de Janne para a família. Esta imagem é carregada de significados, pois representa a concretização de sonhos da fotógrafa. Como ela enfatiza: “morro de saudade de morar lá. Foi um tempo muito bom morar lá, pois era perto de minha mãe, tinha quintal grande, amigos. Me sinto mal vendo a foto, porque não moro mais lá.”

 

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Segundo Ribeiro (1994), no álbum de família “a fotografia diz a sociedade quem você é, por isso a tendência de se mostrar o melhor lado na fotografia”. Busca-se apresentar uma imagem saudável e de satisfação para atrair empatia e amor de outras pessoas. Neste álbum as imagens de doença são registradas - seja de Vanessa, filha de Jeanne, com uma enfermidade grave, assim como de Jeanne após uma operação - criando documentos desta trajetória da família. Estas imagens indicam a existência de valores e regras sociais diferenciados em relação à produção e exibição da imagem, mostrando desconhecer padrões sociais que ocultam aspectos privados da família.

Aparentemente, para Jeanne há outros limites no ato fotográfico, pois cria uma documentação da história da família enquanto memória, abrangendo um amplo espectro, que incluí aspectos positivos ou negativos. Considera que o álbum de família expõe as diversas vivências do cotidiano, também não diferenciando as dimensões do público e do privado na ordem da imagem.


 

 

Na Foto 14, apresentando Vanessa fragilizada, nota-se que está cercada de amigos e familiares, como se estivessem criando uma barreira física e afetiva, protegendo-a. Nesta fase o futuro de Vanessa estava incerto.

Deste modo garantiu-se esta imagem. Atualmente, a foto resiste, relembrando os sofrimentos vividos e atuando no sentido da vitória alcançada em relação à superação da doença.

Na imagem seguinte, comemorando a vitória de Vanessa em relação à enfermidade, vê-se um grupo de amigas de sua mãe preparando a sua festa de aniversário. Trata-se de um marco na trajetória de Vanessa, que é fixado imageticamente, representando uma conquista a ser relembrada.

Ainda em relação ao âmbito do privado, nas Fotos 17 e 18 , ambas de autoria de Jeanne, já se verifica o reforço da imagem da família feliz e unida, que a fotógrafa quer conservar, exibindo o ultrapassar de fases sofridas.

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Na Foto 17, Jeanne monta o cenário e cria o ambiente romântico em sua casa, produzindo este gênero de fotografias, exibidas em revista. Mostra possuir padrões adquiridos da mídia, identificando-se com as noções e valores sociais divulgados nestas imagens, buscando reproduzí-las e expor esta forma de envolvimento amoroso no seu cotidiano.

A Foto 18 mostra Valmir com as filhas, exibindo a família reunida. Vê-se Valmir olhando fixamente a câmera, como se estabelecesse um diálogo com a fotógrafa, no sentido de que esta é a imagem de união que Jeanne quer efetivamente guardar e conservar da família - ultrapassando dificuldades e discórdias no relacionamento.

Há poucas fotos como estas últimas no álbum de família, mostrando não ser muito comum estes registros. Porém estas imagens fixam uma lembrança amorosa, seja da esfera do casal ou da família, guardando uma memória de coesão e unidade familiar a ser recordada, sobrepondo-se à conflitos e ao sofrimento vivenciado.

 

Em relação ao conjunto das imagens apresentadas, destaca-se que, principalmente, os retratos do namoro possuem como cenário ambientes externos, sendo que as séries do casamento, do cotidiano e da vida em família localizam-se em ambiente doméstico -no interior da casa- privilegiando visões e sentimentos de interiorização, conforto, proteção e segurança.

Neste sentido, as fotos da família Lima Fontes expõem dois tempos e espaços - o do namoro/rua e o do casamento/ casa. Assim, apesar do uso do álbum como arma por Jeanne, no sentido empírico e simbólico, apropriando-se de alguns significados da fotografia, ela constituiu um retrato da memória de sua família.

 

 

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Na família Lima Fontes, Jeanne, a mãe, é a fotógrafa, criando uma identidade social através desta prática. Como enfatiza Miriam Moreira Leite (1998), “fixar as fotografias, avaliá-las e distribuí-las é papel feminino. Desde muito jovem, as mulheres são atraídas por espelhos, que lhes devolvem a imagem, que é comparada ao ideal dominante amplamente divulgado pela mídia”.

Para Jeanne, o relevante é o ato fotográfico, buscando registrar o cotidiano de sua família e preservar esta história. Mas também podemos ver nas suas fotos uma intensa incorporação de valores disseminados pela mídia, ressaltando-se a dimensão de exibição das imagens ao procurar salientar a sua condição social para os parentes na terra natal.

Por outro lado, os retratos da família Lima Fontes revelam o desconhecimento de normas consagradas deste gênero de fotografia como o ocultamento de conflitos e o não registro de momentos difíceis no trato com a enfermidade, não compondo somente um álbum da “dignidade” do núcleo familiar.
 

No caso, este álbum fotográfico pode ser considerado como um livro da família, expondo o âmbito da intimidade e situando-se fora de uma homogeneidade vigente neste tipo de documento.

Problematizando o álbum de família, para Schapochnik (1998), “as imagens existem com uma mensagem destinada a desencadear reações em quem as observa. Mesmo as imagens com mensagens diferentes em cada família, a leitura de imagens pelos seus próprios membros busca a identidade e a participação em um grupo. A família deseja integrar-se, fazer parte de algo maior e seu álbum tem o poder de classificá-los em grupos na sociedade. O ato de compreender por que e para que algumas imagens foram construídas altera e amplia a visão e o conteúdo desta imagem”.

Em relação ao retrato de família, pode-se dizer que foi entrando no cotidiano das pessoas, localizando no âmbito familiar o ambiente ideal para se fixar.

Algumas Reflexões Finais

“A Galeria de Retratos democratizou-se e cada família tem, na pessoa do seu chefe, o seu retratista. Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar-lhes como um legado, a imagem dos que foram ... O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística do tempo perdido que estas apresentações comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas por ordem cronológica, ordem das estações da memória social, evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados por que o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente” (Le Goff, 1984).

O processo de leitura e análise da imagem é instigante e revelador. Conviver com uma família vendo os seus retratos, discutindo-os, observando o  seu processo  de  apropriação  e
 
reconhecimento nas imagens, cria novos indicadores para a reflexâo e a interpretação do retrato de família. Para a família o álbum é de suma importância, pois as fotografias constituem um instrumento moderno, que permite a conservação da continuidade visual do passado, explicando o motivo porque a fotografia é considerada a história visual deste núcleo ou apoio para a sua memória.

O núcleo famíliar somente sobrevive enviando mensagens ao futuro, deixando marcas de sua passagem sobre a terra. Para a família Lima Fontes, o álbum de retratos detém muito valor, correspondendo à uma forma de integração na sociedade. Enquanto família migrante necessitam reconstituir sua vida na cidade de São Paulo e as imagens expõem a sua inserção neste novo mundo.

Além disso, os retratos também atuam como a memória do que deixaram para trás, procurando conquistar um sonho. Para este núcleo de migrantes as imagens possuem a função de recordação para várias gerações e de elo de ligação com os parentes.
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O álbum de família constitui-se em uma de suas melhores expressões, conservando-se “como um relicário” (Raposo, 1998: 39) e transformando o retrato em talismã ou amuleto.

A naturalidade ao se lidar com a fotografia é que esconde o valor de culto atribuído ao retrato fotográfico. O local escolhido na casa, para a exposição das imagens do álbum de família, a parede da sala, ou aparador do hall de entrada - passará a ser um altar singular, onde os retratos dividirão o espaço com imagens sagradas.

Como enfatiza Walter Benjamin (1985) as imagens apresentam valor de culto, podendo-se constatar que os retratos geram emoção e adquirem este valor de culto porque estas fotografias existem, devido a relação da fotografia com seu referente -o objeto desejado, o corpo prezado- associado ao lugar de destaque que ocupam no espaço doméstico e ao significado atribuído às imagens.

Os retratos fotográficos apresentam os heróis eleitos.
 

Assim, por representarem um ser querido para alguém retomam algo de “divino”, desempenhando papéis atribuídos às imagens de deuses e santos e passando a ser objetos de um culto particular. (Raposo, 1998).

Para uma família o seu álbum é um bem precioso - garantia da preservação da história e da continuidade da espécie. A necessidade de eternizar os momentos mais significativos faz do álbum fotográfico uma peça fundamental na existência de uma família.

 

 

 

 

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Yara Schreiber Dines - antropóloga, Doutoranda em Antropologia Social pela Pontifícia Universidade Católica-SP, onde desenvolve pesquisa sobre as imagens do lazer e estilo de vida na metrópole paulistana dos anos 70 até a atualidade. Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Fotografia do Senac-SP. Membro do Conselho Editorial da Revista Espaço & Debate - Estudos Regionais e Urbanos - FAU/USP e São Carlos .

Principais publicações sobre Memória Fotográfica:
SCHREIBER, Yara et alli. Cadernos Cidade de São Paulo. São Paulo: Instituto Cultural Itaú. 1992-1996.
SCHREIBER, Yara et alli. Catálogo da exposição Comunidade Judaica em São Paulo: Diálogos nos Anos 40. São Paulo, Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, 1990.

 


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