Jens Baumgarten


I. Perspectiva polifocal e iconografia pós-tridentina segundo o exemplo de Conceição da Praia em Salvador da Bahia.

A igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia encontra-se na Cidade Baixa. O edifício de hoje foi fundado no século XVIII pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição. Já em 1623 a paróquia foi instalada sob o quinto bispo da Bahia, Dom Marcos Teixeira. A imagem foi oferecida à conceição de Maria. Frei Agostinho de Santa Maria diria que é “a primeyra que com mayor devoção se viera, he a Santissima Imagem de Nossa Senhora da Conceição, com quem geralmente toda aquella cidade tem particular devoção. (...) Depois que a ermida da conceição foi elevada à grandeza de Paróquia, os devotos da Senhora da Conceição fundaram uma Irmandade dedicada à Santíssima Mãe de Deus pela grande devoção com que todos a amam e veneram”.
 
As festas que faziam a sua Senhora, como dizia Frei Agostinho de Santa Maria, eram de muita grandeza e grande aparato. A festa da Conceição realizava-se no dia 8 de dezembro. As irmandades de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a do Santíssimo Sacramento eram as principais confrarias instituídas na Igreja. Sobretudo as Irmandades das camadas negras da população foram envolvidas na história desta igreja. No século XVII foram instauradas as Irmandades de São Benedito e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Praia. A veneração de Maria exercia assim um papel oficial importante. Maria foi declarada protetora de Portugal e de todas as suas colônias em 1640 e 1646.

Não posso discorrer aqui sobre a história da construção do prédio e do pano de fundo sócio-cultural. Essencial é o fato de que esta igreja em Salvador, envolvida na administração colonial, fez-se presente na cultura popular da Bahia.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Sistemas de Visualização: Da Perspectiva Central à Percepção Emocional. Nova Abordagem à Cultura Visual entre a Europa e a América Latina durante o início do Período Moderno.

Os elementos visuais que se apresentam se valem da chamada “grande arte”, seja esta de caráter literário (tratados teológicos) ou visual (imagens sacras). Esta teoria sobre as imagens religiosas quer ajudar a construir uma “Textura do Cotidiano” através de sistemas visuais comuns.Assim, as imagens sacras exercem papel fundamental na construção de identidades coletivas, nacionais e mesmo supranacionais e ao mesmo tempo de alicerces individuais íntimos, como no caso apresentado dos oratórios particulares. A criação da rotina é a criação da cultura. Um caso singular da história brasileira sempre apontado pelos estudiosos é a quase inexistência de conflitos armados nas transformações sociais do Brasil. A partir deste fato olha-se para os conceitos integrativos de supra- e subculturas brasileiras com outros olhos. Estes conceitos apresentaram enorme resistência e durabilidade para sobreviver a cataclismas políticos e sociais sem desaparecer por completo.

Autor: Jens Baumgarten

e -mail: jens_baumgarten@hotmail.com





Revista Chilena de Antropología Visual - número 4 - Santiago, julio 2004 -
300/316 pp. - ISSN 0718-876x.
Rev. chil. antropol. vis.



 <<   Ô  >>
<<  Ô  >>
Nesta forma de cultura devocional foram reunidos momentos de devoção mariânica e de formação de identidade –como aqueles visíveis nas Irmandades afro-brasileiras.

Permitam-me algumas observações sobre a pintura de José Joaquim Rochas (1737-1807). A pintura do teto em perspectiva da nave da Igreja Matriz remonta ao modelo que foi trazido de Portugal. A técnica utilizada foi a pintura a óleo. Nesse forro, o pintor da Rocha representou um novo andar com balcões, colunas, mísulas, arcadas e entaboamento. Essa pintura compõe-se no sentido longitudinal em três partes distintas. No espaço central que representa o céu estão a padroeira da Igreja e alguns santos. Nos espaços extremos desse eixo, vêem-se duas representações de cúpulas . A pintura do quadrado no teto dessa nave não seguiu o princípio da perspectiva linear com um só ponto de fuga. Para a projeção das linhas verticais, o esquema das tangentes obedecia aos pontos múltiplos de distração, o que permite a existência de pontos de vista variados e variáveis à contemplação.
 
O espectador se depara com o primeiro ponto de vista na entrada da Igreja e outros pontos seguiam-se ao primeiro, na medida em que o mesmo espectador se movimenta no interior da nave em direção ao arco do cruzeiro a observar de “baixo para cima”.

Esse teto em perspectiva possibilita aos olhos ver em simultaneidade a representação da arquitetura como espaço cenográfico, povoado de figuras. Especialmente esta possibilidade do olhar polifocal possibilita de forma exemplar a transformação de elementos ideológicos pós-tridentinos, aos quais pretendo me referir na segunda parte da palestra. A iconografia dominante que pretende dar origem a uma identidade coletiva une-se a uma percepção essencialmente individual através de uma perspectiva fragmentada. As figuras representadas nesse passeio ilusório pela Igreja possibilitam uma nova visão. Sobre os balcões figuram personagens do Velho Testamento, os quatro doutores da Igreja Romana e alegorias das virtudes cristãs.



Nessa quadratura, o pintor ainda executou quadros ilusórios que fazem alusão ao mistério da Virgem, da Eucaristia e prefigurações de Maria no Antigo Testamento. Nas cúpulas fingidas figuram anjos que sustentam o emblema Mariano e a coroa da Rainha do Céu.

No espaço central, aberto ao céu, figuram Deus Pai, o Espírito Santo, o cordeiro místico, ladeado por São João Evangelista e por São João Batista, a Virgem da Conceição, a alegoria dos quatro continentes e os anjos. Não posso entrar aqui em detalhes com relação à iconografia ou às capelas laterais. Importante é a ênfase dada à Maria, além da abertura à perspectiva central e a multifacetação de Maria como deusa celeste e rogadora, como fêmea apocalíptica e patrocinadora da Imaculada Conceição. Na abertura para o céu a Virgem da Conceição é glorificada como mãe e advogada dos homens. Na sua mão, ostenta o lírio, símbolo de sua pureza. A outra mão, ela a deposita sobre o peito.

 
Em torno da sua cabeça brilham 12 estrelas como em sua aparição no Apocalipse de São João. A pintura do teto da Conceição da Praia celebra a defesa do culto imaculista. A Virgem da Conceição é a Nova Era, concebida sem pecado original, a representação da Igreja, a porta do céu e a Padroeira do Reino Português.

Também no século XVIII estabeleceu-se, em Salvador, a Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos. Seus membros tomaram Nossa Senhora da Conceição por padroeira da agremiação. Na primeira conferência pública, os acadêmicos juravam defender a verdade da Imaculada Conceição da Virgem Mãe de Deus e recitavam panegíricos alusivos a esse mistério, implorando a sua proteção. A representação do teto enaltecia a Virgem da Conceição, a Rainha do Céu. Celebrava o seu triunfo sobre as heresias e o pecado. Aos pés da Virgem encontram-se a lua crescente, as alegorias da América, Europa, Ásia e África em devoção.



O tema da adoração dos quatro continentes foi difundido igualmente em Salvador. Por exemplo, a representação da adoração de Cristo nos quatro continentes de José Theóphilo de Jesus, igualmente do século XVIII. Ao lado das inovações ilusionistas e iconográficas, o tema da adoração se mantém dentro do esquema tradicional dos quatro continentes. Para as representações da imagem religiosa, o tema da formação étnica ou etnicidade não tinha significância – ao menos para a representação de uma igreja católica vitoriosa que se queria converter em monumento por si mesma.


 
Sistemas visuais: A visualização como princípio católico de domínio e disciplina social.

Estas representações ilusionistas precisam ser complementadas por outros exemplos tanto da América Latina como da Europa. Várias diferenças iconográficas podem ser identificadas, mas também conivências. O mesmo vale para uma análise formal da pintura ilusionista. Em razão da escassez do tempo de exposição não pretendo fazer nem mesmo um resumo destas diferenças. Deixem-me ir logo ao tema dos sistemas visuais. Utilizo aqui percepções e categorias de Martin Jay e sua análise da variação de perspectiva ou, como Jay diz, da ordem escópica que estão baseadas em concepções filosóficas de Christine Buci-Glucksmann em relação ao barroco e que pertencem, segundo a minha opinião, a um meta-discurso que engloba a transformação social na Era Pré-Moderna .O ponto de partida para Jay é a afirmação de que a visão, o elemento visual, é o sentido predominante da Era Moderna.
A pergunta insurgente para ele é portanto: Existe uma ordem escópica ou várias ordens concorrentes e, em caso afirmativo, como se formaram os subsistemas visuais? Ele diferencia três modelos: 1. A perspectiva central da percepção renascentista associada à filosofia da idéia cartesiana da razão subjetiva. “O perspectivismo cartesiano correspondia a uma visão de mundo para a qual o mundo não era um texto hermenêutico a ser desvendado, mas uma ordem matemática e regular dentro do tempo e do espaço, recheada de objetos naturais que só podem ser vistos de fora através do olhar impassível de um pesquisador”. A conseqüência foi a desistência do engajamento emocional. O abismo entre observador e objeto observado aumenta: Elementos corporais e sensualidade desaparecem. 2. A chamada arte descritiva que enfatiza a superfície visível e nega o olhar monocausal privilegiado e ainda inclui a existência permanente de objetos que não se incluem no esquema da “Janela de Alberti”. E finalmente 3. a contracorrente visual do “barroco”, chamada por Buci-Glucksmann de alternativa principal ao perspectivismo cartesiano hegemônico. A fascinação do barroco é dedicada à intransparência, à ilegibilidade e à indecifrabilidade do mundo representado.
 
A filosofia privilegiada distancia-se do modelo da clareza intelectual e de sua linguagem livre de sentidos duplos e percebe, ao contrário, o envolvimento insolucionável, existente entre a retórica e a visão: imagens eram símbolos e conceitos continham, por sua vez, uma parcela iconográfica irredutível. O barroco tentou representar o irrepresentável. O Barroco, com sua nostalgia incurável, esteve mais próximo do belo do que daquilo a estética tradicional chamou de augusto. O desejo não se deixava eliminar nem em suas formas eróticas nem em suas formas metafísicas.

O barroco -definido por Buci-Glucksmann como uma Anti-Ordem– só pode ser bem compreendido como parte integrante do sistema colonial brasileiro através das concepções de José Maraval, como espero poder apresentar através do exemplo da igreja da Conceição de Salvador. Portanto pretendo inverter a anti-ordem visual descrita por Buci-Guckmann, pondo-a de cabeça para baixo.



302
303
304
305
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Como se apresenta portanto o sistema visual dominante pós-tridentino? “Vera ecclesia sit visibilis”. “A verdadeira igreja tem que se tonar visível” – uma das frases centrais do jesuíta Roberto Bellarmino do século XVI. A seguir pretendo esclarecer através de cinco tópicos as adaptações e modificações da disciplina social e da praxe dominante, com toda a brevidade necessária.

1. A questão das imagens foi um dos pontos principais das disputas interreligiosas. O Concílio de Trento (1545-1563) tornou-se uma guinada histórica essencial no que diz respeito à questão do conflito teológico sobre a importância das imagens, sobretudo do lado católico. Os teólogos pós-tridentinos desenvolveram uma concepção estética relevante do ponto de vista da história da mídia, mas também utilitária e politizante.

Os bispos e teólogos católico-reformadores como Carlo Borromeo (1538-1584), Gabriele Paleotti (1522-1597), Roberto Bellarmino  (1542-1621)  e  Antonio   Possevino    (1533-1611) escreveram em fins do século XVI os principais tratados teórico-teológicos sobre a arte sacra e concepção teórica do sermão no período pós-tridentino.

 
As imagens foram defendidas, a princípio, por todos os quatro autores. A legitimação se manteve aliada à tradição como, por exemplo, na comparação da imagem com o livro e na argumentação oriunda desta comparação no sentido da “biblia pauperum”. Ao lado de mnemotécnicas, as imagens foram defendidas por causa de sua função pedagógica. Mas, ao mesmo tempo, todos os autores enfatizaram a sua função transcendental e mística. Como sendo uma modificação essencial, considerou Paleotti a função da “excitatio”, a possibilidade de mexer com imagens e emoções concomitantemente no sentimento dos fiéis. Paleotti transferiu a tipologia da retórica para o seu tratado sobre a arte sacra. A produção de reações e efeitos emocionais exerceria logo um papel essencial na espiritualidade inaciana.







Do mesmo modo, os autores levantariam o culto às imagens como importante elemento diferencial frente à estética protestante. As imagens não seriam apenas defendidas, mas se tornariam - muito mais do que isto – simplesmente obrigatórias. As imagens adquiriram o dever de conduzir o fiel ao culto.

2. A função do artista foi debatida pela primeira vez em tratados teológicos sobre as imagens. Em primeiro lugar, os tratados receberam honrarias da própria igreja. A seguir foi definida a sua área de aplicação: Nem a liberdade artística deveria ser tolhida nem os teóricos desenvolveriam prescrições estilísticas propriamente ditas – e sim prescrições normativas e morais. As imagens deveriam, primeiramente, cumprir com o quesito de serem instrutivas e moralmente exemplares para os fiéis. Como o principal multiplicador da fé católica, a imagem seria assim submetida a um controle rígido.


3. O observador atingira o âmago das considerações pós-tridentinas.

 
Através da transmissão da fé “correta” aos fiéis, o artista adquiria um papel teologizante. Isto se torna claro na estética de Paleotti sobre a recepção da imagem. Paleotti pretendia ver todo fiel “acometido” por uma imagem. Para tanto, dividia os fiéis em quatro grupos de acordo com suas capacidades intelectuais e psíquicas. O aspecto central era a análise dos chamados “idioti”. Neste contexto, Paleotti desenvolveu uma estética do efeito através da ênfase no termo “persuasione”, oriundo este da arte retórica romana. Aqui se unem os dois campos de efeito: as imagens e os sermões (que criam imagens orais) para levar aos fiéis o conteúdo principal do catolicismo reformado. As imagens interiores e exteriores, criadas para os fiéis e «dentro» dos mesmos, ficavam assim submetidas a um controle canônico-teológico constante.

4. A fase de «relaxamento» doutrinal foi marcada pelo período de transição da igreja “militante” para a igreja “triunfante” – uma igreja que já não pretendia se defender da ameaça protestante.

Roma se transformara então num “laboratório” do qual participaram teólogos e artistas, compondo juntos o “sacrum theatrum”, baseado nas proposições da “igreja visível”. Na urbanística, pintura e escultura, criou-se um meta-discurso e um diálogo entre imagens e palavras.Os primeiros indícios de uma política imagética partiram do Concílio de Trento e de suas diretrizes. A polaridade entre imagens e textos foi instrumentalizada na concepção de uma arte “nova”. A religiosidade popular adquiriu novos impulsos criativos e sofreu, ao mesmo tempo, maior pressão de controle social.

O novo conceito geral formou-se na junção entre a arquitetura, a escultura e a liturgia. O movimento, ou melhor, a movimentação do observador dentro da igreja adquiriu novo papel: não apenas a locomoção (física), mas também a comoção (emocional). Deste modo, Paleotti influenciou o pensamento posterior de Andreas Pozzo e Rocha. Os princípios teológicos da visualização levaram à existência de uma cultura corporativa na Igreja Católica. O catolicismo barroco significou uma proposta de amálgama social - salvação visível e a própria construção desta visibilidade.

 
5. Na arte barroca os conceitos estéticos e teológicos dominantes foram ainda mais aprimorados -tornando-se visualizações de conceitos que servem ao fiel de símbolo orientador na nova sociedade católica reformada. O próprio espectador em movimento pela igreja e comovido interiormente torna-se uma peça do cenário. O teorema jesuítico pós-tridentino e sua nova concepção da imagem em si, os modelos romanos, a representação do poder e a liturgia encontram-se e fundem-se numa síntese.

Sem a imagem perfeita não há fé correta. A nova ênfase dada às imagens une-se a uma nova visão da sociedade. As mudanças ocorridas até 1800 levariam à construção de uma nova perspectiva eclesiástica e iconográfica que acabou desembocando no ilusionismo perspectivista, unido elementos de emocionalidade irracional com a transformação plástica de conceitos teológicos intransigentes.



306
307
308
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Sua função é importantíssima, devido à irônica inexistência de um santo no maior País católico do mundo até hoje Esta dupla função se torna clara. Desde o milagre de sua aparição em 1717 e a construção de uma capela em sua homenagem, que se tornaria mais tarde a Basílica de Aparecida, esta santa se viu perfeitamente integrada à devoção barroca. Vejamos aqui a imagem da Madonna de Aparecida na Basílica homônima. Vê-se um possível recurso à  Madonna   Imaculada    de   que   falei   no    princípio    da
exposição. O mesmo se pode dizer sobre Iemanjá do camdomblé. Porém, a devoção de Aparecida sofreu uma mudança essencial para o surgimento de seu subsistema: a cor negra que se transforma assim em símbolo de identidade étnica, mais do que apenas estética. Assim junta-se à imagem da Madonna a lenda daquele escravo que, fugindo de seus algozes, adentra a Basílica e recebe a graça da liberdade por intermédio direto da Maria negra. As lendas, a cor e a simbologia tornam-se contra-culturais, porém a liturgia e o locus da Santa ainda são oficiosos e dominantes.

 
Conclusão

Os elementos visuais apresentados se valem da chamada “grande arte”, seja esta de caráter literário (tratados teológicos) ou visual (imagens sacras). Seria, no entanto, necessário ainda enfatizar a importância das imagens populares “de rua”. Só pude mencioná-las sem desenvolvê-las amiúde, fazendo referência a um ensaio de David Morgan de 1998, em debate com os textos sociológicos de Bourdieu, Berger e Luckner, sobre o valor do hábito cotidiano.

O hábito cotidiano torna-se uma categoria de enorme importância para a organização da vida, de acordo com códigos, decisões e cerimônias. Bourdieu descreveu o hábito como “matrix” de percepções, preferências e atitudes. A alma ou o próprio ego não obedecem a uma configuração aleatória de papéis, mas a um “enredo” coerente em torno de um repertório histórico.


Além disso, podem ser detectadas influências iconográficas nas figuras dos santos negros São Elesbao, S. Benedito, S. Antonio de Noto. Sobretudo no exemplo de S. Elesbao, um rei etíope, o qual – como conta a lenda – derrotou um príncipe árabe, a iconografia serve de enorme fonte de formação de identidade étnico-religiosa, levada adiante pelas irmandades de Nossa Senhora do Rosário: o triunfo de um rei negro sobre um príncipe branco.

2. O segundo exemplo está totalmente vinculado aos oratórios particulares. Aqui, mais do que nunca, residem os elementos da contra-cultura. Primeiro, vejamos um oratório com cenas da Paixão de Cristo do século 18 em Minas Gerais. Os episódios distintos do martírio de Cristo vêm desenhados no oratório. As cenas em si não vêm ao caso.

 
O mais importante é o segundo oratório do qual se desconhece a origem, provavelmente elaborado em torno de 1800. Claro se torna o casamento entre o rito católico oficial e o candomblé afro-brasileiro. Não há tempo para uma análise minuciosa, mas vale a pena ressalvar a importância da contra-cultura particular dentro de um supra-sistema iconográfico-teológico dominante.

3. O último exemplo demonstra o envolvimento e a interseção ou cruzamento de supra- e subtendências, da cultura dominante com a contra-cultura particularista. A famosa devoção a Nossa Senhora de Aparecida serve de exemplo instrutivo. Lembremos que esta é a Padroeira do Estado Brasileiro e a Santa Nacional do Brasil desde o século XIX.

Contra-Cultura e Privacidade: Os oratórios e a devoção à Nossa Senhora de Aparecida.

De que forma os conceitos europeus e romanos até aqui apresentados se internacionalizaram? Com base em minha exposição até o presente momento, pretendo agora aprofundar as conseqüências sofridas em ultramar. A Era Barroca significou muito para o Brasil em termos históricos, como o historiador brasileiro Paulo Herkenhoff indicou: um “processo civilizado alternativo”. Porém, vale indagar: Este sistema católico-romano mostrou-se absoluto e incontestável ou será que houve subsistemas de contra-cultura? E como estes podem ser identificados?

Deixem-me, para concluir, citar três exemplos ilustrativos:

1. O primeiro exemplo vem embasado numa análise iconográfica breve de uma escultura do século 18 na Bahia. Que possibilidades de identificação e emotividade se oferecem neste exemplo ?

 
Pretendo aqui embasar-me naquilo que foi proposto por Carlo Ginzburg em seus estudos sobre o efeito da punição em representações visuais. Primeiramente, os senhores podem ver uma aquarela do Rio de Janeiro no ano de 1829 e uma outra cena similar, representada por Jean Baptiste Debret em litografia colorida dos anos de 1834 a 1839. O açoite público e a humilhação social se espelham nas chagas de Cristo do oratório privado, ou seja, a emotividade não está resumida apenas às obras expressivas de um Aleijadinho, mas também na simbologia das chagas de Cristo no cotidiano da população afro-brasileira daquela época.


311
310
309
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>

Imagens sacras tinham e têm assim uma função compensatória o adolescente rebelde, o marido responsável, o avô sábio até chegar ao escravo que vê sua honra redimida – enfim, como “ritos de passagem” a uma cerimônia superior, oferecendo assim um alicerce social comum e identidades a facções grupais distintas.

Esta teoria sobre as imagens religiosas quer ajudar a construir uma “Textura do Cotidiano” através de sistemas visuais comuns: elementos narrativos e de memória iconográfica coletiva – como aqui na fotografia de Antonio Saggese de 1992 os ex-votos refletem o ato de olhar e também os sistemas visuais. Assim, as imagens sacras exercem papel fundamental na construção de identidades coletivas, nacionais e mesmo supranacionais e ao mesmo tempo de alicerces individuais íntimos, como no caso apresentado dos oratórios particulares. A criação da rotina é a criação da cultura.

 
Um caso singular da história brasileira sempre apontado pelos estudiosos é a quase inexistência de conflitos armados nas transformações sociais do Brasil.

A partir deste fato olha-se para os conceitos integrativos de supra- e subculturas brasileiras com outros olhos. Estes conceitos apresentaram enorme resistência e durabilidade para sobreviver a cataclismas políticos e sociais sem desaparecer por completo. Creio que os sistemas visuais tiveram papel deveras significativo na manutenção da ordem política na História do Brasil.







312
<<  Ô  >>

Referencia bibliográfica

Aguilar, Nelson (Ed.). Negro de Corpo e AlmaBlack in Body and Soul. Catalogo Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais. São Paulo 2000.
Angelozzi, Gilberto Aparecido. Aparecida: A Senhora dos esquecidos. Editora Vozes. Petrópolis 1997.
Appuhn-Radtke, Sybille. Visuelle Medien im Dienst der Gesellschaft Jesu: Johann Christoph Störer (1620-1671) als Maler der katholischen Reform. Schnell und Steiner. Regensburg 2000.
Ávila, Affonso. The Baroque Culture of Brazil. Em: Brazil: Body and Soul. Ed. de Edward J. Sullivan. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002. pp. 114-127.
_________: (Ed.). Barroco: Teoria e Análise. Editora Perspectiva. São Paulo 1997.
Ávila, Cristina. Brazilian Baroque Art. Em: Brazil: Body and Soul. Ed. de Edward J. Sullivan. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002. pp. 128-137.
Battisti, Alberto (Ed.). Andrea Pozzo. Milano. Trento 1996.
Baumgarten, Jens. Die Gegenreformation in Schlesien und die Kunst der Jesuiten. Das Transitorische und das Performative als Grundbedingung für die Disziplinierung der Gläubigen. Jahrbuch für Schlesische Kirchengeschichte. No 76/77. pp. 129-164. 1997/98
___________:Konfession, Bild und Macht. Visualisierung als katholisches Herrschafts- und Disziplinierungskonzept in Rom und im habsburgischen Schlesien. 1560-1740. Hamburgo 2002.

 
Bellarmino, Roberto. Controversiarum de Ecclesia triumphante liber secundus: De reliquiis et imaginibus sanctorum. Roberti Bellarmini. Opera omnia, ed. de Justinus Fèvre, vol. 3. Paris 1870. pp. 199-266.
Boschloo, Anton Willem Adriaan. Annibale Carracci in Bologna. Visible Reality in Art after the Council of Trent. 2 vols. 's-Gravenhage 1974.
Brustoloni, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: A Imagem, o Santuário e as Romarias. Editora Santuário. Aparecida 1979.
Buci-Glucksmann, Christine. La foli du voir: de l’esthetique baroque. Paris 1986.
_____________: Baroque reason. The aesthetics of modernity. London 1994.
_____________: Der kartographische Blick in der Kunst. Berlin 1997.
Burda-Stengel, Felix. Andrea Pozzo und die Videokunst. Neue Überlegungen zum barocken Illusionismus. Gebr. Mann. Berlin 2001.
Burke, Peter. Augenzeugenschaft: Bilder als historische Quellen. Wagenbach. Berlin 2003. Edição inglês Eyewitnessing: The Uses of Images as Historical Evidence. London 2001.
Calì, Maria. Da Michelangelo all'Escorial. Momenti del dibattito religioso nell'arte del Cinquecento. Torino 1980.
Concilium Tridentinum: diarium, actorum, epistularum, tractatum nova collectio. Ed. da sociedade de Görres. Friburgo 1965. T. 9.6.
<<  Ô  >>
313
301

Kemp, Wolfgang. Kunstwissenschaft und Rezeptionsästhetik. Em: Der Betrachter ist im Bild. Ed. de idem. Berlin 1992. pp. 7-28.
Kerber, Bernhard. Andrea Pozzo. Berlin, New York 1971.
Lemos, Carlos A. C. A imaginária paulista. Edições Pinacoteca. São Paulo 1999.
Maravall, José Antonio. La cultura del Barocco. Alianza Editoral. Barcelona 1990 (1a edição 1975).
Megale, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. História-Iconografia- Folclore. Vozes. 6ª Edição. Petrópolis 2001.
Mello e Souza, Laura de (Ed.). Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Editora Schwarcz. 7ª reimpressão. São Paulo 2002.
Mendes, Nancy Maria (Ed.): O barroco mineiro em textos. Autêntica. Belo Horizonte 2003.
Morgan, David. Visual piety: a history and theory of popular religious images. University of California Press. Berkeley 1998.
Mott, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundo. Em: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Ed. de Laura de Mello e Souza. Editora Schwarcz. 7ª reimpressão. São Paulo 2002. pp. 155-220.
Moura, Carlos Eugênio Marcondes de (Ed.). Candomblé. Tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Pallas Editora. Rio de Janeiro 2000.
Mühlen, Ilse von zur. Imaginibus honos – Ehre sei dem Bild. Die Jesuiten und die Bilderfrage. Catalogo Rom in Bayern. Kunst und Spiritualität der ersten Jesuiten, ed. de Reinhold Baumstark. Monaco 1997, pp. 161-170.

Nitsch, Wolfram. Barocke Dezentrierung. Spiel und Ernst in Lope de Vegas Dorotea. Em: Joachim Küpper, Friedrich Wolfzettel (eds.): Diskurse des Barock: dezentrierte oder rezentrierte Welt? Fink. Monaco 2000. pp. 219-244.

 

O’Malley, John W., Bailey, Gauvin Alexander, Harris, Steven J., Kennedy, T. Frank (ed.). The Jesuits: cultures, sciences, and the arts, 1540-1773. UTP. Toronto 1999.
O'Malley, John W. Trent and all that. Renaming Catholicism in the Early Modern Era. Cambridge, London 2000.
Paleotti, Gabriele. Discorso intorno alle imagini sacre e profane. Bologna 1582. Em: Ed. de Paola Barocchi. Trattati d'arte del cinquecento. Fra manierismo e controriforma. 3 vols. Bari 1960-62. vol. 2. pp. 117- 503 e pp. 615-699.
Pietschmann, Horst. Portugal–Amerika–Brasilien: Die kolonialen Ursprünge einer Kontinentalmacht. Em: Horst Pietschmann (ed.). Eine kleine Geschichte Brasiliens. Edition Suhrkamp. Francoforte 2000. pp. 11-123.
Prodi, Paolo. Il Concilio di Trento e la riforma dell'arte sacra. Em: Arte, economia, cultura e religione nella Brescia del XVI secolo. Ed. de Maurizio Pegrari. Brescia 1988, pp. 387-399.
Prodi, Paolo. Il Cardinale Gabriele Paleotti (1522-1597). 2 vols. Roma 1959/1967.
Ribeiro de Oliveira, Mzriam Andrade. O Rococó no Brasil e seus antecedentes europeus. Cosac & Naify. São Paulo 2003.
Scavizzi, Giuseppe. La controversia sull'arte sacra nel secolo XVI. Cristianesimo nella storia. No 14. 569-593. 1993 .
Scribner, Bob. Das Visuelle in der Volksfrömmigkeit. Em: Bilder und Bildersturm im Spätmittelalter und in der frühen Neuzeit. Ed. de idem e Martin Warnke. Wiesbaden 1990, pp. 9-20.


DaMatta, Roberto. The Message of Brazilian Rituals: Popular Celebrations and Carnival. Em: Brazil: Body and Soul. Ed. de Edward J. Sullivan. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002. pp. 128-137.
De Feo
, Vittorio e Valentino Martinelli (Ed.). Andrea Pozzo. Milano 1996.
De Maio, Romeo. Rinascimento lievemente narrato. Neapel 1993.

Del Priore, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. Editora brasiliense. São Paulo 2000.

___________:Ritos da vida privada. Em: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Ed. de Laura de Mello e Souza. Editora Schwarcz. 7ª reimpressão. São Paulo 2002. pp. 275-330.

Dietrich, Thomas. Die Theologie der Kirche bei Robert Bellarmin (1542-1621). Paderborn 1999.
Diez, Karlheinz. “Ecclesia–non est civitas platonica“: Antworten katholischer Kontroverstheologen des 16. Jahrhunderts auf Martin Luthers Anfrage an die Sichtbarkeit der Kirche. Verlag Josef Knecht. Francoforte 1997.
Eire, Carlos M. N. The Reformation Critique of the Image. Em: Bilder und Bildersturm im Spätmittelalter und in der frühen Neuzeit. ed. de idem e Martin Warnke. Wiesbaden 1990. pp. 51-68.
Fausto, Boris. História concisa do Brasil. Edusp. São Paulo 2001.
Fonseca, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença. Imagens de negro na cultura brasileira. Em: Brasil Afro-Brasileiro. Ed. de Maria Nazareth Soares Fonseca. Autêntica. Belo Horizonte 2000. pp. 87-116.
 

_____________: (Ed.). Brasil Afro-basileiro. Autêntica. Belo Horizonte 2000.
Giard, Luce e Vaucelles, Louis de (ed.): Les Jésuites à l’Age baroque (1540-1640). Editions Jérôme Million. Grenoble 1996.
Hall, Michael M. Brazil in Historical Context. Em: Brazil: Body and Soul. Ed. de Edward J. Sullivan. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002. pp. 34-45.
Hecht, Christian. Katholische Bildertheologie im Zeitalter von Gegenreformation und Barock. Gebr. Mann. Berlim 1997.
Heinen, Ulrich. Rubens zwischen Predigt und Kunst. Der Hochaltar für die Walburgenkirche in Antwerpen. Weimar 1996.
Herkenhoff, Paulo. Brazil: The Paradoxes of an Alternate Baroque. Ultra Baroque: Aspects of Post Latin American Art. Catalogo. San Diego 2000.
Jay, Martin. Die skopische Ordnung der Moderne. Leviathan No 20 pp. 178-195. 1992.
____________: The Downcast Eyes. Berkeley 1993.
Jedin, Hubert. Geschichte des Konzils von Trient. 4 vols. Friburgo 1949pp.
____________: Kirchenreform und Konzilsgedanke 1550-1559. Em: Kirche des Glaubens– Kirche der Geschichte. Vol. 2, Konzil und Kirchenreform. Friburgo 1966. pp. 237-263.
____________: Papst und Konzil. Ihre Beziehungen vor, auf und nach dem Trienter Konzil. Ibid. pp. 429-440.
____________: Kleine Konziliengeschichte. Friburgo 1977.


315
314
<<  Ô  >>
<<  Ô  >>
Silva Santos, Paulo Roberto. Igreja e Arte no século XVIII. Criar Edições. Curitiba 2002.
Sullivan, Edward J. (Ed.). Brazil: Body and Soul. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002.
____________: Brazil: Body and Soul. Em: Brazil: Body and Soul. Ed. de Edward J. Sullivan. Catalogo Guggenheim Museum. New York 2002. pp. 2-33.
Tinhorão, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. Editora. São Paulo 2000.
Tirapeli, Perceval: Igrejas Paulistas: Barroco e Rococó. Editora Unesp. São Paulo 2003.

____________: (Ed.). Arte sacra colonial. Editora Unesp. São Paulo 2001.
Vainfas, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial. Objetiva. Rio de Janeiro 2000.
Wittkower, Rudolf e Jaffè, I. B. (ed.). Baroque Art and the Jesuit Contribution. New York 1972.
   
316
<<  Ô  >>