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Os videoclipes tem merecido atenção especial da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Privilegiando a linguagem da arte, exploram fronteiras, utilizam-se de recursos do documentário e constroem uma narrativa própria. O tema da religião está presente em videoclipes de músicos brasileiros importantes, como Mariza Monte e Chico César, por exemplo.

Este é um campo que vai se tornando fluido, permeável. Como separar o tema da religião das demais questões que mobilizam a sociedade brasileira no seu dia a dia? Movimentos sociais articulados a música, por exemplo, surgem como estratégias culturais de resistência em diversos âmbitos sociais. Há um interesse renovado, especialmente do público mais jovem, por tradições regionais brasileiras, fundidas a novas linguagens e novas propostas estéticas e políticas. Voltam a estar presentes nos filmes: As festas de São João, as Festas do Divino Espírito Santo, o Forró, o Maracatu, o Bumba-meu-Boi, ou o Afoxé da Bahia, por exemplo.


Talvez no panorama atual, meu projeto sobre as Folias de Reis, pudesse então virar filme.
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Em 1995 organizei a Mostra O Olhar do Cinema, com uma seleção de filmes e vídeos abordando a temática da religião. A Mostra fazia parte de uma conferência geral sobre a história da Igreja Católica na América Latina e no Caribe, resultando no artigo A religião no Cinema, publicado no catálogo do evento. Este trabalho ampliou o panorama temático do levantamento de 1984 a que já me referí e incluiu novos filmes e novos diretores.

Fronteiras da religião/fronteiras do documentário

Conforme tentei abordar neste rápido panorama, o tema da religião tem sido tratado no cinema documental pelos mais importantes realizadores de nossa tradição, desde as primeiras produções. Variou em ênfase e estilos. Tomo aqui a diferenciação feita por Paul Henley
12. Henley, P. Cinematografia e pesquisa etnográfico. Cadernos de Antropologia e Imagem, n. 9/2. Rio de Janeiro, NAI/UERJ, 1999. para tratar o filme etnográfico, aplicando-a ao documentário de forma geral: documentaçãoxdocumentário. O que o documentarista quer hoje, é contar uma história.

Dentre os 832 filmes documentários exibidos nos 8 anos da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, 50% de filmes são brasileiros e dentre eles, 18% abordam a temática da religiosidade popular.

Antropólogos dos anos 90, interessam-se por trabalhar com a imagem e vários vídeos são produzidos como resultado de suas pesquisas. Há também os que se inserem no mercado do audiovisual, através de projetos mais amplos, e mesmo da televisão. Os filmes Pomba Gira (1999); Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos (1999); Música do Brasil (2000) e Além Mar (1999), são resultado destes trabalhos e abordam o tema da religião.
João Moreira Salles diretor de diversos documentários que vão se projetar nos anos 90 (Futebol, Notícias de uma guerra particular) vai ter um lugar importante no processo de aquecimento da produção documental dos últimos anos no Brasil. Sua produtora, Videofilmes, (que dirige com o irmão Walter Salles, de Central Station) abrirá as portas para jovens estreantes. O diretor passará a se dedicar também ao ensino do cinema documentário. Dentre os projetos recentes, realizou Santa Cruz, uma produção para a televisão. Santa Cruz faz parte de uma série de seis programas intitulada Seis histórias brasileiras. São narrativas construídas a partir de diversas realidades do cotidiano do Brasil. O filme relata as etapas na construção de uma pequena igreja pentecostal, na periferia do Rio de Janeiro. Acompanha a trajetória do pastor e seus fiéis durante alguns meses.

Se na primeira fase da história do documentário os objetos focalizados estão geralmente associados à distância, ao desconhecido, ao estranho, ainda que dentro do próprio Brasil, como em Rituais e Festas Bororo; no “cinema novo” ou segunda fase, esta busca desloca-se para as grandes cidades, para o desenvolvimento do país e novas formas de descobertas, associadas também a experimentações de linguagem. Na terceira fase, que amadurece a partir dos anos 90, o foco volta-se para o grupo social do próprio realizador, possibilitando uma diversidade de abordagens, visões, ângulos e diálogos. Alargam-se as fronteiras entre o documentário e a ficção, entre a objetividade e a subjetividade, entre a ciência e a arte.

Não vamos deixar de mencionar, neste panorama, os videoclipes. Estratégia de divulgação do mercado musical, difundida na televisão especialmente a partir dos anos 90.
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O novo documentário

Uma terceira fase na história do documentário no Brasil vai associar-se às revoluções de linguagem com a introdução do vídeo e seu desenvolvimento, a partir dos anos 80. As novas perspectivas abertas pela reflexão antropológica também vão ter influência neste processo. Equipamentos de vídeo mais ágeis e portáteis vão baratear a produção. Surgirão instituições voltadas para o movimento popular, ongs, valorizando a produção de imagens em seus projetos de atuação. Apostarão na formação técnica de agentes e pesquisadores, como por exemplo o CTI – Centro de Trabalho Indigenista. Criado em São Paulo, na década de 80, o CTI realizou o projeto Vídeo nas Aldeias. Este trabalho tinha como objetivo capacitar as populações indígenas em recursos audiovisuais. Acreditavam que o vídeo tornar-se-ia um instrumento importante no processo de conquista da autodeterminação das populações indígenas. Assim também atuaram diversas outras ongs voltadas para os movimentos populares e muitas delas envolvidas com a temática da religião.

Em 1986, o cineasta Eduardo Coutinho, hoje um de nossos mais importantes nomes no panorama do documentário brasileiro, realizava seu primeiro trabalho em vídeo: Santa Marta – duas semanas no morro. Enfocava a questão da violência a partir de entrevistas com moradores de uma favela na zona sul do Rio de Janeiro. Este vídeo foi uma produção do ISER. Realizou ainda Os romeiros do Pe. Cícero(1994), voltando ao tema da romaria a Juazeiro do Norte, no Ceará e vários outros títulos. Coutinho institucionalizou no Brasil um estilo de fazer documentário, que vai se atualizar em seus filmes mais recentes: Santo Forte (1999) e Babilônia 2000 (2000).
Ambos enfocam a questão da religião no cotidiano de moradores de favela da Zona Sul do Rio de Janeiro. Saber ouvir, no sentido mais profundo desta afirmação, e saber perguntar, podem ser resumidas como as principais virtudes de Coutinho. Na proposta de Coutinho o documentário é o resultado de uma constante negociação entre o diretor e o seu objeto, um encontro único que se concretiza no filme.

O documentário ganhou, nos anos 90, um novo impulso, com a abertura de canais de televisão à cabo e alguns apoios estatais para a sua produção, além da criação de diversos festivais dedicados ao gênero: Mostra Internacional do Filme Etnográfico (1993, no Rio de Janeiro), Festival É Tudo Verdade (Rio de Janeiro e São Paulo, 1996), Festival de Cinema Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte (1996). Antropólogos e pesquisadores, interessados no universo da imagem, começam a encontrar diálogo com os cineastas e videastas. As aproximações entre ciências sociais e a imagem ganham maior visibilidade no Brasil
11. Publicação da revista semestral Cadernos de Antropologia e Imagem, a partir de 1995 e I Concurso de Vídeo Etnográfico Pierre Verger da Associação Brasileira de Antropologia, 1996.. As fronteiras entre a arte e a ciência se alargaram. A pesquisa etnográfica ganhou novos contornos. Questionou-se as relações sujeito/objeto na pesquisa e enfatizou-se o caráter construído do texto antropológico como ‘narrativas ficcionais’. O reconhecimento de uma Antropologia Visual aproximou antropólogos e pesquisadores do universo da fotografia, do cinema e do vídeo. A produção imagética tanto será objeto de investigação, dado de informação como produto final de inúmeros projetos voltados para este campo nos últimos anos. Por outro lado a retomada do cinema brasileiro nos anos 90 – após período de decadência na era Collor – trouxe novos ares para o documentário.
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Brasil-Verdade foi exibido no Festival de Veneza, em 1965. É do período seguinte o filme Visão de Juazeiro, já citado, de Eduardo Escorel (1969/70) que aborda a história da cidade de Juazeiro do Norte e seu culto ao famoso Padre Cícero. Os dois filmes fizeram parte da série de documentários produzida por Thomaz Farkas - que liderou iniciativa única na produção cinematográfica brasileira dos anos 60 a 80. Sua proposta voltava-se para a documentação da cultura brasileira de norte a sul do Brasil, contando com a colaboração de jovens cineastas, descontentes com os rumos políticos do Brasil, a partir de 1964. Farkas realizou parcialmente seu projeto, com um saldo de mais de 30 filmes de curta metragem, com títulos abordando o tema da religião. Esta produção ficou conhecida como A caravana Farkas. As influências do cinema social inglês dos anos 20/30, e especialmente as propostas do cinema-verdade de Jean Rouch, dos anos 50/60 marcaram a realização de tais documentários.

Nos anos 50/60 houve uma importante circulação entre os profissionais da fotografia e do cinema, observando-se aqueles que se destacaram na produção de imagens no campo da religião. Podemos citar entre os nomes, Pierre Verger, antropólogo e fotógrafo, que também realizou filmes; José Medeiros, fotógrafo, dedicou-se ao tema da religião e tornou-se fotógrafo de cinema; Jean Manzon, fotógrafo, foi o responsável por uma infinidade de documentários de temática cultural no Brasil nos anos 50/60; Luis Carlos Barreto, fotógrafo, passou à fotografia no cinema e posteriormente à produção.
O cinema documentário brasileiro dos anos 70 é visto, hoje, como um importante instrumento no que se chamou processo de “redescobrimento cultural do Brasil”. Com as leis de proteção ao mercado do filme de curta-metragem brasileiro, de caráter cultural, houve um crescimento da produção. O filme Iaô (1970), de Geraldo Sarno, é um exemplo. Enfoca o dia a dia de uma comunidade baiana de Candomblé, registrando com riqueza etnográfica, o processo de iniciação de uma filha-de-santo (Iaô). Eduardo Escorel fez Jubileu (1981), focalizando a romaria a Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo, Minas Gerais; Vladimir Carvalho (1962) dirigiu Romeiros da Guia, sobre uma romaria no interior da Paraíba; Roberto Moura (1973) dirigiu Sai dessa Exu, sobre a Macumba no Rio de Janeiro e muitos outros filmes podem ser citados abordando a temática da religião, de diretores importantes.

Embora a câmera na mão, proposta por Jean Rouch, vá estar entre as diretrizes adotadas por muitos dos documentaristas brasileiros à época, a prisão à narração em off deixará suas marcas na maior parte dos filmes. Os filmes deste período buscam exercitar a linguagem cinematográfica e alguns podem ser destacados por excepcionais experiências estéticas. Mas estão presos, em geral, a teses e idéias pré-concebidas. Mostram o encantamento dos diretores com seus temas, mas também sua crença na objetividade da câmera. E assim vão em busca da realidade que terá a função de confirmar as idéias formuladas pelo diretor. Essas mesmas idéias serão transmitidas ao espectador na narração.
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O cinema que se desenvolveu a partir dos anos 30 no Brasil, seguiu também um outro caminho, o da industrialização, que vai se institucionalizar nos anos 50. O documentário, ganhou status de “cinema cultural” neste período e obteve apoio estatal a partir de 1937. Foi criado o Instituto Nacional do Cinema Educativo e buscou-se caminhos próprios de linguagem, sendo Humberto Mauro um importante nome na história do documentário brasileiro. Realizou mais de trezentos filmes de curta-metragem.

Na produção deste período a ênfase está, no entanto, na perspectiva herdada das ciências naturais, de busca da totalidade da cultura, registrando e coletando, numa atitude documentária9.  Clifford, J. A autoridade Etnográfica. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1998:25.. Muitas imagens vão ser produzidas nesta mesma direção. Coleciona-se objetos como também gestos, comportamentos, práticas tradicionais e rituais. Através dos filmes busca-se perenizar eventos vistos como fadados ao desaparecimento: os passos de uma dança, o preparo de um alimento, um ritual funerário, uma festa religiosa.

Esta perspectiva, no documentário, vai continuar recorrente, na produção brasileira.




O documentário no “cinema novo”

Uma segunda fase, no documentário brasileiro, vai inaugurar-se a partir das propostas de um “cinema novo”, na década de 1960, liderada por Glauber Rocha. Nelson Pereira dos Santos será um dos principais articuladores desse projeto. Buscava-se um significado cultural para o cinema brasileiro em oposição ao crescente cinema industrial, de influência americana. A proposta do “cinema novo” era a de um cinema que pudesse refletir a vida e os costumes do povo, diziam os documentos dos principais encontros que irão gerar o movimento. O tema da religião estará em destaque tanto na ficção quanto no documentário. Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto (1959) e Barravento, de Glauber Rocha (1961) são longa-metragens de ficção que refletem as discussões propostas pelo ambiente ideológico da época: crítica ao conceito de alienação, em geral associado às manifestações religiosas, políticas e culturais do povo. Dos anos 60, em plena proposta da “estética da fome”, Deus e o Diabo na Terra do Sol e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro são marcos cinematográficos também na ficção.

O documentário ganhará destaque no período com o lançamento de Viramundo (1964) de Geraldo Sarno, narrando o cotidiano de migrantes nordestinos na cidade de São Paulo. Neste filme, já considerado clássico, o tema da religião aparece em primeiro plano.O filme enfatiza a busca pelas crenças religiosas na adaptação do migrante à cidade
10. Ver Jean Claude Bernardet. Cineastas e Imagens do povo. São Paulo, Brasiliense, 1985.. Baseado em dados de pesquisa sociológica o filme faz parte da série Brasil-Verdade, que engloba o trabalho de 4 outros diretores tratando dos temas: samba, futebol e cangaço.
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Cerimônias funerárias entre os Bororo, Festa do Divino Espírito Santo, Festejos Populares de Mogy das Cruzes são filmes dirigidos por Lévi-Strauss e sua mulher Dina e foram realizados entre 1935 e 1936. Vão ser recuperados, em 1992, no documentário dirigido pelo brasileiro Jorge Bodanzki e pelo francês Patrick Menget À propos de Tristes Tropiques, realizado para a televisão francesa.

No panorama dos primeiros filmes, não só a descoberta do “outro”, dentro do próprio Brasil, das populações nativas, desperta os primeiros registros documentais de cinema. Eventos considerados excepcionais, relacionados à processos de doença e cura, crenças e cultos, também vão ganhar destaque na produção cinematográfica. As notícias sobre os milagres de uma mulher, no interior do estado de Minas Gerais, vão atrair multidões para seu pequeno sítio e resultar no filme A Santa de Coqueiros, de Ramon Garcia (1930). Notícias publicadas na imprensa do Rio de Janeiro vão inspirar o filme As Curas do Prof. Mozart, de Alberto Botelho, também em 1930.

Curiosa foi a estratégia do médico sanitarista Noel Nutels7. O trabalho de Noel Nutels foi recentemente estudado por Stella Penido. Noel Nutels: uma câmera testemunha. In Cadernos de Antropologia e Imagem, n. 8. Rio de Janeiro, NAI/UERJ, 1999., para desenvolver seu trabalho junto a populações indígenas e sertanejas do Brasil Central, a partir dos anos 40. Para desenvolver campanhas de vacinação em massa e atingir a um número máximo de pessoas, instituiu o “dia nacional da vacina” geralmente em datas e locais de festas populares e romarias.
Incluiu a câmera cinematográfica entre seus equipamentos de trabalho e realizou, em 16 mm, 34 filmes totalizando aproximadamente 5 horas de duração Ao longo de trinta anos desenvolveu seu trabalho de pesquisa e atendimento médico. A estratégia de concentrar o atendimento médico em locais de festas populares e romarias garantiu a Nutels não só a eficácia de seu trabalho como a captação de imagens singulares. Em Belém do Pará fez o filme Procissão do Círio, nos festejos de Na. Sa. de Nazaré. Em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, realizou dois filmes, registrando a igreja, a gruta, a sala de milagres, a romaria, a procissão, os romeiros. (Imagens de Bom Jesus da Lapa estão registradas na exposição Acts of Faith, que representou o Brasil em eventos internacionais ao longo das comemorações dos 500 anos do descobrimento).

Inúmeras documentações fílmicas só serão conhecidas do grande público alguns anos mais tarde de sua produção. Por exemplo, as imagens da vida de Pe. Cícero, no interior do Ceará, realizadas nos anos 30, que vão aparecer em documentário nos anos 70, como imagens de arquivo. Este é o caso do filme Visão de Juazeiro, a que irei me referir mais adiante. Mas outros filmes também foram encontrados através de empreendimentos de pesquisa recentes, em arquivos particulares e instituições espalhadas pelo país. Posso citar como exemplo importante documentário sobre o folclore brasileiro realizado em 1937, no nordeste do Brasil, no contexto da Expedição de Coleta Folclórica de Mário de Andrade8.Com imagens de Luis Saia. Hoje no acervo do Centro Cultural São Paulo, SP..


Traçando uma história

Como aparece o tema da religiosidade popular na produção documental brasileira? Em que período ganha destaque? Quais são os principais filmes? Quem são os principais diretores e que importância o tema ganha em sua filmografia? Essas são as principais questões que vou procurar responder.

Uma primeira constatação é a de que o tema vai estar presente desde os primeiros títulos, no final do século XIX. Há notícias de primeiras imagens cinematográficas realizados pelos irmãos italianos Paschoal e Affonso Segretto - considerados os pioneiros do cinema em terras brasileiras. Suas imagens registram construção de templos (1898), rituais funerários (1900) e festas religiosas populares (1900) no Rio de Janeiro. Na literatura sobre o tema, os filmes Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, de Diomedes Gramacho, realizado em Salvador, em 1912 e Milagres de Santo Antonio, de Antonio Serra, realizado no Rio de Janeiro, no mesmo ano, são citados como os primeiros filmes brasileiros de temática religiosa.

Primeiros filmes: documentação


Em 1916, o filme Rituais e Festas Bororo, vai marcar a história do cinema documental no Brasil. O filme foi dirigido pelo Major Luiz Thomas Reis. Era o cinegrafista da famosa expedição encarregada de implantar as linhas telegráficas no Brasil Central, de Mato Grosso ao Amazonas. A Comissão Rondon foi dirigida pelo Marechal Rondon. Criada em 1907 produziu rica documentação em fotos e filmes, captando o cotidiano dos trabalhos e a interação com as populações indígenas. Uma produção, ainda hoje, pouco explorada.

Para Pierre Jordan6. Jordan, Pierre. Primeiros contatos, primeiros olhares. Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro, NAI/UERJ, 1995., o trabalho de Reis é considerado o “primeiro filme etnográfico verdadeiro... filma utilizando todas as potencialidades que lhe oferece o tipo de material que dispõe. Ele escreve com a câmera”. Reforçando essa idéia Pierre Jordan escolhe uma imagem de Rituais e Festas Bororo, de Thomas Reis para a capa de seu livro Cinema: Premier Contact-Premier Regard (1992), catálogo que reúne as primeiras produções fílmicas ao redor do mundo, para divulgar a história de nossas sociedades através do cinema.

Rituais e Festas Bororo
enfatiza o cotidiano de vida e trabalho dos índios Bororo, no Brasil Central, registrando danças, indumentárias e rituais funerários, buscando traçar seu contexto. O filme tem sido destacado na crítica cinematográfica como a primeira experiência fílmica brasileira de sucesso com montagem cinematográfica.

Os rituais funerários entre os Bororo também vão ser destaque na produção de Dina e Claude Lévi-Strauss, durante sua permanência de pesquisa no Brasil na década de 1930. Convidado a participar da criação do curso de Sociologia da Universidade de São Paulo, Lévi-Strauss desenvolveu diversas pesquisas no Brasil, introduzindo a fotografia e o cinema como instrumentos da investigação. Produziu uma coleção de fotografias, parcialmente publicada na obra Tristes Trópicos. As fotografias vão aparecer, de forma autônoma, somente em 1996, na publicação de Saudades do Brasil. Da mesma forma realizou diversos pequenos filmes em 16mm, que registram grupos indígenas, rituais, além de festas religiosas populares na periferia de São Paulo. O trabalho de Lévi-Strauss com a imagem é um retrato das primeiras difusões dos equipamentos cinematográficos na experiência acadêmica no Brasil.
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A primeira constatação do levantamento de filmes para a Mostra foi a de que os acervos de documentários brasileiros estavam dispersos naquele tempo (e ainda hoje). O levantamento temático dos filmes foi um longo trabalho de garimpo. Trabalhei com as principais instituições depositárias, catálogos de produtoras disponíveis à época e distribuidoras. Nesta pesquisa preliminar, foram arrolados 62 filmes de curta e média metragem abordando o tema da religião popular, no gênero documentário, produzidos no Brasil até 1984. É importante notar que, até esta data, não se considerou vídeos no conjunto da produção.

Quase 20 anos se passaram. Vivendo num mundo marcado pelo visual, a fotografia, o cinema, o vídeo, ganharam um lugar de destaque no processo de comunicação entre os povos e na disseminação do conhecimento hoje. As reflexões pós-modernas na antropologia do início da década de 80, também tiveram influência no Brasil. Abriram espaço para o reconhecimento de novas linguagens e novas estratégias metodológicas de pesquisa. A investigação, iniciada por mim nos anos 80, transformou-se no projeto da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Este é um evento anual que coordeno, no Rio de Janeiro, desde 1993 e que, inegavelmente, ampliou a discussão sobre a antropologia visual no campo brasileiro fazendo a ponte entre o universo do documentário com a pesquisa antropológica.

A pesquisa de filmes passou a ser, para mim, um projeto em constante processo: seja investigando a produção brasileira, seja sobre a produção internacional4. Monte-Mór, P. No garimpo do nitrato. In Desafios da imagem. Papirus, 1996.. Centrei-me no cinema documental, valorizando as aproximações entre o ofício do antropólogo e seu método de pesquisa e a descrição no documentário cinematográfico5. Ver Maggie, Y. Etnografia, observação participante e documentário de cinema. Comunicações do ISER n. 10. outubro 1984.. Acervos, títulos, temas, cronologias, autores, estilos foram sendo delineados. Em vários desdobramentos do meu trabalho, a religião vai ganhar destaque, tanto pelo interesse original de pesquisa quanto pela recorrência de filmes e vídeos neste campo, na produção documental brasileira.

O Brasil, considerado em termos demográficos como a maior nação católica do mundo, exibe cotidianamente as heranças de suas tradições religiosas. O catolicismo tradicional apresenta sua versão carismática e suas práticas populares. As tradições afro-brasileiras, exibem influência profunda na cultura, assim como o protestantismo e suas denominações; o espiritualismo, os rituais xamanísticos e as diversas outras tradições e práticas devocionais.

Tomando como pano de fundo a minha trajetória citada, pretendo traçar um panorama da produção do documentário brasileiro, em cinema e vídeo, desde as primeiras produções, tendo como foco o tema da religiosidade popular.






Patrícia Monte-Mór2.  Antropóloga, professora do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UERJ. Coordenadora do Núcleo de Antropologia e Imagem da UERJ. Curadora da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, Rio de Janeiro.
Foi a minha própria experiência visual com rituais do catolicismo popular, que me fez navegar pelos mares da fotografia e do vídeo durante trabalho de campo em favela do Rio de Janeiro. Era o início da década de 1980. Tinha como objetivo estudar as Folias de Reis. São rituais do catolicismo popular, tradicionais dos festejos natalinos dos meios rurais brasileiros. Especialmente encontradas no interior dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, chegaram às grandes cidades na bagagem de migrantes.

A partir do Morro de Mangueira eu desenvolvi meu trabalho. Fascinava-me o cenário da Folia na Mangueira. Grupos de devotos dos “Santos Reis”, vestidos em seus uniformes ao estilo militar, percorrendo casas e altares espalhados por toda parte. Pagam assim, suas promessas e recebem doações para os festejos finais. Como descrever aquele universo tão denso? O que significava para trabalhadores urbanos, moradores de favelas e periferias, celebrar o nascimento de Jesus, segundo as tradições católicas populares, realizando anualmente os rituais das Folias de Reis? As Folias de Reis exibiam-se coloridas, em procissão mas também em dança; em contrição, mas também em júbilo. Mesclavam o sagrado com o profano; tradições católicas com rituais afro-brasileiros; santos com palhaços; fardas com fantasias; mantos com máscaras; reza com música. Nas subidas e descidas do morro, nas noites inteiras de celebração, descobri que o caderno de campo não seria suficiente para registrar tão rica experiência.

A exuberância das cores das roupas, a performance dos grupos com suas cantorias tradicionais e as imagens de seus santos tinham um enorme apelo visual. Contando com a colaboração do documentarista José Inácio Parente, iniciei-me no mundo das imagens, através da fotografia e do vídeo. Fotos e vídeos revelaram-se instrumentos essenciais no processo de observação e pesquisa na Mangueira, na interação com os informantes e na conseqüente obtenção de dados. Não se transformaram, contudo, em produtos finalizados, autônomos do meu trabalho. Pretendia transformar as horas de imagem registradas em vídeo num filme, e não numa simples documentação da pesquisa. Não consegui os meios adequados, nem técnicos nem teóricos, naquele momento para tal empreendimento. Mas o caminho foi aberto.

Trabalhando durante alguns anos seguindo a temática do catolicismo popular, envolvi-me, a partir de 1980, com o ISER – Instituto de Estudos da Religião. Trata-se de uma Ong composta por pesquisadores voltados para a pesquisa e a reflexão sociológica e antropológica sobre a religião. No ISER pude dar continuidade às questões suscitadas por minha pesquisa sobre as Folias de Reis. Desenvolvi vários projetos que articulavam produção de imagens com o tema da religiosidade popular. Organizei uma Mostra de Filmes: Religiões Populares no Brasil, em 19843. Publicada em Comunicações do ISER n. 10. outubro de 1984. Levantamento de Filmes., que resultou numa mostra itinerante por universidades brasileiras e na publicação de um levantamento de títulos produzido para o evento.


   
Religião e filmes documentários no Brasil1. Popular religion and documentary films in Brazil. Trabalho apresentado no Seminário organizado pela Universidade de Oxford, Acts of Faith, Oxford, fevereiro de 2002..

A religião popular através de imagens do cinema documentário no Brasil. O pioneirismo de Rituais e Festas Bororo de Luiz Thomas Reis (1916) abre um rico panorama que focalizará, de modo sistemático, milagres, festas, romarias, rituais diversos de religiosidade popular na produção cinematográfica. A Santa de Coqueiros (Ramon Garcia, 1930), Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970), Santa Cruz (João Moreira Salles, 2000) são titulos que fazem parte deste cenário. Entre a documentação e o documentário, a produção de cinema e vídeo tem hoje, com o desenvolvimento da antropologia visual, novas perspectivas.










Autor:
Patrícia Monte-Mór
Antropóloga. Profesora del Departamento de Ciencias Sociales del Instituto de Filosofia y Ciencias Sociales. UERJ.

e-mail:
patriciamontemor@terra.com.br



Revista Chilena de Antropología Visual -
número 5 - Santiago, julio 2005 -
133/142 pp. - ISSN 0718-876x.
Rev. chil. antropol. vis.



 
 
 
 
 
 
 
 

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