Fábia Berlatto & Ana Luisa Fayet

A pesquisa etnográfica que apresentamos teve início em agosto de 2004 durante as comemorações dos 50 Anos da Casa da Estudante Universitária de Curitiba (CEUC), pertencente à Universidade Federal do Paraná. A ocasião especial facilitou a entrada das pesquisadoras na Casa da Estudante sem alterar o cotidiano de suas moradoras1. A condição de gênero das duas pesquisadoras, ambas mulheres, observando, registrando e analisando a dinâmica de um alojamento feminino, ainda que importante, não será tematizada aqui. .

Dada à aproximação conseguida através do acompanhamento da celebração, procuramos captar, através do registro fotográfico, diversas formas de relação das habitantes da Casa entre si que, inicialmente, tinham em comum apenas o fato de serem estudantes, emigrantes numa “terra estranha”. Apreendemos algumas maneiras pelas quais a sociabilidade (Simmel, 1983) construída pelas moças se configura durante o período de permanência na Casa. Sociabilidade marcada pelo imperativo da construção de relações e identidades neste novo espaço. Assim, os instantes fixados pelas máquinas fotográficas destacam o cotidiano das ceuquianas (i.e., as residentes da CEUC), marcado pelo ritmo das aulas, dos trabalhos escolares, da organização da rotina da casa, dos encontros fortuitos nos corredores, nas cozinhas, nos banheiros. Momentos da companhia desinteressada, da reconstrução da subjetividade na constante relação entre o individual e o coletivo, o familiar e o desconhecido, o público e o privado.  

Nesta etnografia visual o desafio esteve na busca por imagens que funcionassem numa dupla perspectiva: de descobrir e de contar (Guran, 1990). Na condução metodológica e teórica da pesquisa, Guran (1986; 1990) nos ensina que cada tipo de fotografia deve ser analisado tendo em conta a sua especificidade e o contexto de sua produção. Assim, a distinção fundamental a ser considerada na análise do material fotográfico que apresentamos é sua natureza emique ou etique de cada imagem.

A fotografia emique é produzida ou assumida pela comunidade estudada e encontra-se forçosamente impregnada pela representação que a comunidade ou seus membros fazem de si próprios e, por conseqüência, expressa, ou conta, de alguma maneira a identidade social do grupo em questão. Já a fotografia de natureza etique é feita pelo pesquisador e, por isso, constitui-se sempre numa hipótese a se confirmar a partir do conjunto de dados recolhidos ou por meio de outros procedimentos de pesquisa. A fotografia é, então, uma ferramenta de descoberta para o pesquisador.

As fotografias, portanto, podem ser utilizadas como um instrumento de pesquisa (imagens etique) ou se confundirem com o próprio objeto de pesquisa (imagens emique).

       
 

Um lar em terra estranha:  Espaço e sociabilidade em uma casa de estudantes feminina.


A artigo apreende formas de sociabilidade construída entre as moradoras da Casa da Estudante Universitária de Curitiba. A orientação dos fotogramas é dada pelo olhar “de fora” e “de dentro”, que traduzem percepções distintas sobre as relações sociais e formas de ocupação do espaço. As conexões entre as meninas envolvem um cálculo de afinidades pessoais cujas idiossincrasias estão destinadas e obrigadas a desaparecer tão logo se forme a pequena comunidade do dormitório, do andar, ou a grande comunidade da Casa. O paradoxo é que é preciso afirmar a individualidade antes para dissolver-se na coletividade depois. Longe de casa, o indivíduo descobre e inventa outra Casa, graças às relações que busca estabelecer. Esse artifício gera novos valores e produz um novo indivíduo. É isso que torna a CEUC um palco para a dramatização de um rito de passagem da casa para o mundo, da adolescência para a vida adulta.

Palavras chaves: sociabilidade; identidade, espaço.



Autor:
Fábia Berlatto
Graduação em Ciências Sociais Bacharelado. Mestrado em Sociologia. Universidade Federal do Paraná.
Ana Luisa Fayet
Graduação em Bacharelado em Sociologia e Antropologia. Doutorado em História. Universidade Federal do Paraná.

e-mail: fabiaberlatto@yahoo.com.br , analuisa@ufpr.br

Recibido: 9 de Septiembre 2008    Aceptado: 5 de Noviembre 2008




 
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Quando ocorre o segundo caso, as fotografias podem também ser utilizadas como instrumento de pesquisa, isto é, como um meio que o pesquisador emprega para induzir o pesquisado a buscar ele mesmo a informação que fará avançar a reflexão científica. Aliás, nada impede que uma mesma imagem, seja ela emique ou etique, cumpra diversos papéis durante a pesquisa e na demonstração dos resultados.

Aproveitamos as duas perspectivas descritas acima neste trabalho etnográfico, já que ele foi elaborado por uma pesquisadora “estrangeira”, para quem o espaço da CEUC era completamente novo; e uma pesquisadora “nativa”, ex-moradora da Casa por quatro anos e meio. Deste modo, buscou-se representar estes dois pontos de vista distintos e demarcar seus significados heurísticos específicos. Assim, a estratégia adotada para orientar a visão do espectador-observador (que vê as fotos realizadas) é a que apresenta um olhar “de fora” – o olhar etique – da investigadora que teve sua presença facilitada pela outra que já foi “de dentro” – a que possui o olhar emique (Guran, 1986; 1990). Essa oposição vem traduzida nas tonalidades distintivas dos fotogramas, que simbolizam, por sua vez, percepções diferentes sobre as relações sociais na Casa e sobre as diversas formas de ocupação daquele espaço.

As imagens em P&B registram o olhar “sem o conhecimento de causa”, feitas por alguém que não traz consigo as sensações psíquico-sociais de ser ou ter sido uma ceuquiana.

Uma sorte de olhar atento, treinado pela etnografia, mas distanciado. As imagens coloridas mostram a Casa sob a perspectiva daquela que não só observa ou examina, mas percebe e revive as relações interpessoais das moradoras; e é justamente isso que as tonalidades quentes e frias das cores dos fotogramas, registrados por uma antiga ceuquiana, querem representar.

Todavia, notem bem: não se pretende com este expediente estabelecer hierarquias valorativas entre os dois olhares, mas apenas marcar sua diferença, já que eles partem de experiências distintas. Cada um considera, se interessa, julga e congela um tipo de instante que tem a ver com a disposição pessoal daquele que olha. Está em jogo nesta dupla forma de apresentação mais o “sujeito” que observa do que o “objeto” observado. Evidentemente, e por isso mesmo, as imagens descritas pelas câmeras variam do familiar ao típico.
                                                                    
A Casa e as dimensões físicas e simbólicas do espaço

A Casa da Estudante Universitária de Curitiba (CEUC) é um prédio vertical situado na Rua General Carneiro, entre os edifícios da Reitoria e do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, no centro de Curitiba, onde estão instalados os Setores de Educação, de Ciências Humanas, Letras e Artes, distante cem metros da Rua XV de Novembro (conhecida como Rua das Flores).


 

O belíssimo complexo do qual a Casa faz parte tem inspiração na arquitetura modernista. É formado pelo Diretório Central dos Estudantes, pelo Restaurante Universitário e pela Biblioteca Central da UFPR.  O espaço da Biblioteca Central já serviu de salão de festas/cinema durante os primeiros anos de seu funcionamento. Seus bailes estiveram entre os mais requisitados da cidade e eram freqüentados pelos jovens ricos de Curitiba e pelos alunos dos cursos de elite da Universidade (medicina, direito etc.). Este fato rimava com a antiga clientela da Casa, que será comentada mais adiante.


A entrada na CEUC, um novo lar. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.
 

Sociabilidades no saguão: conversas e leituras. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.

O edifício da CEUC possui nove andares. O andar térreo, o primeiro e o segundo andares comportam espaços comunitários. No térreo está situado o saguão, onde se costuma sentar para ler jornais e conversar, uma sala de piano (que ainda abriga o instrumento de marca Essenfelder), e a portaria, onde uma funcionária divide o trabalho com as próprias moradoras que se revezam no plantão: devem-se atender os telefonemas, transferir as ligações, controlar as entradas de não moradoras etc.

 

No primeiro andar há uma velha cantina, onde antigamente funcionava a cozinha industrial (agora desativada) para a preparação do almoço nos finais de semana, e também onde era servido às moradoras um café da manhã preparado pelos funcionários do Restaurante Universitário. O espaço agora é para refeições realizadas em ocasiões especiais, como festas de aniversário promovidas pelas próprias ceuquianas. No primeiro andar há ainda o alojamento, onde ficam instaladas as vestibulandas e as calouras. As últimas devem permanecer ali até que a seleção para moradora e o sorteio dos quartos sejam feitos.


Alojamento temporário: muita gente, pouco espaço. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005. Local: Curitiba – BR.
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No segundo andar estão a biblioteca, uma sala de estudos e outra de televisão (que na realidade é usada mais para namorar), além da Secretaria da Casa. O segundo andar é o limite para os homens, (e eles têm acesso apenas até a meia noite), sem que se deva solicitar uma autorização a dois membros do Conselho Deliberativo e Fiscal formado por moradoras da casa. Este Conselho é também incumbido de permitir a entrada dos homens nos andares que abrigam os quartos. Os 36 quartos estão situados a partir do terceiro andar do edifício. No último andar existem três cômodos: num deles mora uma funcionária, o outro é ocupado pela administração da Casa e, no terceiro está a lavanderia comunitária onde existem dois tanques e pouco espaço para estender roupas.

Cada quarto possui aproximadamente 24 m². São seis por andar. Sua localização é na face norte do edifício, e como as janelas ocupam quase toda a parede (a fachada foi projetada sob a forma de cortinas de vidro), eles se tornam bem aquecidos no inverno, porém muito quentes no verão.

Originalmente seus móveis eram de madeira e fixos na parede, tornando o espaço extremamente padronizado. O grande armário de três portas com maleiro se mantém até hoje. O quarto ainda possuía uma bancada e uma mesinha para estudo. Ao lado de cada um dos três estrados, únicos móveis não fixos do quarto e que criavam um ar de quartel, havia um criado-mudo e uma luminária individual pregada na parede, o que mantinha as camas, na prática, fixas ao local para o qual haviam sido projetadas.

Na parede atrás dos estrados havia suportes de madeira para guardar livros e objetos pessoais. A padronização da disposição dos móveis dava a sensação, característica do modernismo, de extrema impessoalidade ao ambiente, devido à uniformização “fordista” do ambiente. Originalmente, até o enxoval era idêntico.

Na época da federalização da Universidade do Paraná (meados dos anos 1950), e da construção de moradias estudantis, Curitiba não tinha estrutura suficiente para receber o contingente universitário, como pensões e imóveis para locação. Daí que em sua origem a Casa tenha sido concebida como uma espécie de hotel (com serviços de alimentação, lavanderia etc.) para filhas de fazendeiros e comerciantes do interior do Paraná. Os espaços e o mobiliário do edifício foram projetados para abrigar estudantes que trouxessem consigo roupas, pequenos objetos pessoais e materiais de estudo. Com a mudança na origem social de suas inquilinas, que passaram a ser meninas pobres, sem condições de alugar um imóvel na cidade ou formar “repúblicas” por conta própria, a Casa assumiu, em razão de seu novo papel, um aspecto de alojamento. Essa alteração na função da CEUC é um espelho das várias mudanças na função da própria Universidade, no contexto social em que ela se insere e reflete o recrutamento mais universalista dos seus clientes. A contra-face desta “democratização” foi acompanhada pela decadência dos serviços que a UFPR oferecia às estudantes. Paradoxalmente, quanto menos elitizados, menos assistidos.



 

Estudando no quarto. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.

Todas essas mudanças tornaram mais complexa a forma de ocupação dos espaços na CEUC, principalmente a forma de arranjo dos quartos. Tornaram-se necessários, por exemplo, contar com eletrodomésticos como a geladeira; e, nos últimos anos com o computador pessoal. Este aumento de equipamentos de uso pessoal trouxe alguns problemas para a estrutura da Casa, como, por exemplo, a sobrecarga de suas instalações elétricas.

Até quatro anos atrás, a alteração na disposição dos objetos no quarto era bastante limitada, já que era proibida a retirada do mobiliário fixo. Cada moradora, ou cada quarto, tinha que se ajustar ao espaço que lhe era destinado (e, muitas vezes, com o espaço que se “furtava” da colega, consentidamente ou não). Com a supressão desta regra os quartos se tornaram muito mais individualizados e foram assumindo o aspecto que lhe davam suas três ocupantes. É importante observar que quanto mais as estudantes assumem a condição de moradoras da CEUC (e não hóspedes ou pensionistas), maiores as intervenções no espaço físico. A razão prática disso é aproveitar o máximo possível aquele espaço reduzido dos apartamentos. A razão subjetiva é dar uma feição mais individual ao ambiente, tornando-o cada vez mais “familiar” e expressando ainda mais as marcas da identidade pessoal de cada moradora.

 

Esse processo de intervenção no espaço reflete assim esse duplo movimento de articulação de razões práticas e subjetivas que em grande medida tem por função a construção e expressão das identidades individuais face ao coletivo institucional.  Pensando nos termos apresentado por De Certeau (1996) trata-se de um aspecto decisivo para a identidade de um “usuário” (ceuquianas) que lhe permite assumir o seu lugar na rede de relações sociais inscritas no ambiente. Da vivência neste espaço criam-se e recriam-se novos laços sociais que representam também simbolicamente esta dupla dimensão da prática que se contrapõe a “fixidez” do espaço a “fluidez” das relações nele inscritas. A cozinha e os banheiros são coletivos. Há uma cozinha com fogão e pia para cada andar, e dois banheiros, um em cada extremo do corredor. Devido à sobrecarga e a idade da instalação elétrica, os chuveiros tiveram que ser intercalados entre os andares, ou seja, nos ímpares eles ficam do lado esquerdo e nos pares, no direito. Assim, há apenas um chuveiro para 18 moradoras, o que torna seu uso bastante disputado, havendo congestionamentos durante os “horários de pico”. Conflitos aqui são inevitáveis. Com a desativação do serviço de lavanderia fornecido pela Universidade, há muito tempo, foi improvisada a instalação de dois tanques de roupa por andar. A secagem da roupa se faz também nos banheiros, o que é bastante problemático visto que são quase vinte meninas por andar. Para piorar, Curitiba é uma cidade bastante úmida e os banheiros estão instalados na face sul do edifício, com baixa incidência do sol.


Pouco espaço, nenhuma intimidade. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005.
Local: Curitiba – BR.
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Conversa no quarto. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005. Local: Curitiba – BR.

Assim, a transição para a idade adulta (por si só já central na formação da personalidade individual e social) é acompanhada por um processo de reinvenção pessoal: descoberta da sexualidade, formação do gosto, aprendizado político etc. O caminho que vai da família (a casa) para o mundo (a Casa) produz e impõe assim uma espécie de ressocialização, na maioria das vezes sem volta.

Pertencer a uma determinada “panelinha”, ou a nenhuma (o que não é tão raro assim), depende das circunstâncias, dos interesses, de certas características de personalidade e de visões de mundo de cada uma. Os signos exteriores são um dos primeiros elementos a serem avaliados, pois eles podem demonstrar, por exemplo, um maior ou menor pertencimento à  cultura citadina, ou ainda o singun social de cada uma. Esses aspectos as predispõem não para uma irmandade (ou “fraternidade”, como nas repúblicas das universidades dos Estados Unidos), mas para um tipo de casamento, com todos os conflitos decorrentes desse tipo de união.

 

Um novo espaço, uma nova identidade. Marcos de uma experiência pessoal e existência abrangente, porque o espaço da Casa não é somente um objeto de conhecimento, mas principalmente um lugar de um reconhecimento, criando-se assim novas disposições, um habitus (Bourdieu, 1998) e aquele sentido prático que irão progressivamente definir maneiras de ser e de agir. Ou ainda, podemos assinalar, inspiradas nas observações de De Certeau sobre o bairro: trata-se de uma organização coletiva de trajetórias individuais (1996: 46). Trajetórias que são construídas num processo de ajuste do adquirido trazido pelo costume a uma nova “maneira de fazer” e de viver os tempos (do “passado” dos vínculos familiares a um presente totalmente indefinido). Os reflexos desta experiência estarão por toda parte ou ainda, nos pequenos espaços destinados a sua lembrança.  


No espelho... ah! a vaidade. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba - BR.
 

Relações interpessoais e o espaço: público-privado e individual-coletivo

O edifício abriga somente alunas da UFPR cujas famílias moram em cidades do interior do Paraná ou em outras localidades do Brasil. Há também jovens intercambistas  que vêm de países da América Latina e da África.

Assim, toda ceuquiana é uma emigrante iniciando neste novo espaço um processo de aprendizagem do jogo da sociabilidade e da conveniência. Cada jovem possui sua história de vida, seus valores, gostos, disposições pessoais – enfim, uma trajetória peculiar que se choca ou se reconhece ao entrar em contato com as outras moças já nos primeiros momentos de convivência. A conveniência é aqui entendida


No nível dos comportamentos, [como] um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos necessariamente protelados. Por esse “preço a pagar” (saber “comportar-se”, ser “conveniente”), o usuário se torna parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possível a vida cotidiana (De Certeau, 1996: 39).


As 108 ceuquianas são distribuídas em grupos de três moradoras por quarto. A política de composição dos quartos é uma ciranda de encontros e desencontros, de desilusões e surpresas que se inicia já no alojamento, lugar em que as companheiras em potencial são avaliadas e onde se formam as primeiras “panelinhas”. É ali onde os primeiros conflitos ou laços de amizade e solidariedade começam a se estabelecer, e onde se apreendem as primeiras regras da conveniência.

O alojamento recebe estudantes que chegam no começo de cada semestre e que se candidatam para as vagas na moradia. Trata-se de um período tenso não só porque se inicia e anuncia-se a socialização forçada, mas porque as alianças e panelinhas que se formarão serão o resultado do empenho, disposição e talento do indivíduo, sozinha, longe de casa e por conta própria numa terra estranha. As conexões entre as meninas não se constroem apenas pelas prováveis identidades étnicas, religiosas etc. Cada lance (como num jogo de cartas) em direção à aproximação envolve um cálculo de afinidades pessoais cujas idiossincrasias estão destinadas e obrigadas a desaparecer tão logo se forme a pequena comunidade do dormitório, do andar, ou a grande comunidade da Casa. O paradoxo aqui é que é preciso afirmar a individualidade antes para dissolver-se na coletividade depois. Longe de casa, o indivíduo descobre e inventa, graças às relações que busca estabelecer, uma outra Casa. Esse artifício, cujo aprendizado é em boa parte inconsciente, gera novos valores e produz um novo indivíduo.

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Tudo isso é ao mesmo tempo muito transitório, mas não menos importante, já que o período da passagem pela universidade é, para quase todas, de grande transformação pessoal. É isso que torna a CEUC um lugar tão peculiar: um palco para a dramatização de um rito de passagem da casa para o mundo, da adolescência para a vida adulta, ou até mesmo de um ethos camponês para um ethos urbano. Mesmo que a maioria das moças experimente isso, trata-se de uma experiência muito individual, da própria constituição da subjetividade que lhes impõe no domínio de uma experiência comum (todas vivem isso) e da forma particular como essa experiência será codificada.

A distribuição das vagas dos quartos se dá por sorteio. A partir daí se inicia uma série de negociações, de ajustes e reajustes para que as meninas se encontrem, encontrem companheiras semelhantes com as quais têm alguma afinidade e se sintam com isso minimamente confortáveis, espacialmente e emocionalmente. Trata-se também da dupla dimensão aqui presente: da constituição da coletividade e de individualidade. Pela coletividade, entendida como o lugar social que induz aqueles comportamentos práticos mediante o qual todas se ajustam ao processo geral do reconhecimento, concedendo uma parte de si a jurisdição do outro (De Certeau, 1996: 47). Por outro lado, é o lugar social de exercício de outras sociabilidades em que a individualidade de cada uma das moradoras vai sendo construída na condição de grande proximidade espacial umas em relação às outras e ao ajuste de seus dispositivos psíquicos para manterem as distâncias, reguladas pelas regras de conveniência.


Cuidados pessoais. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005. Local: Curitiba – BR.
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Essa dimensão apontada por Hall enfatiza a relação entre o espaço social e pessoal e sua percepção humana, denominada de “proxémia”. Nesse aspecto, o autor destaca a centralidade da cultura apresentando a questão de que indivíduos de culturas diferentes habitam mundos sensoriais diferentes (1986: 13 - grifo do autor). É a cultura que estrutura o mundo perceptivo e a natureza das relações humanas. Ele observa que:

Indivíduos saídos de moldes culturais diferentes podem muitas vezes enganar-se quando interpretam o comportamento dos outros através das relações sociais destes, do seu tipo de actividade ou emoções aparentes. Daqui também o malogro de números contactos e formas de comunicação (Hall, 1986: 205).

Por isso, cada “unidade habitacional”, além de representar a condição (econômica, social e/ou cultural) de origem da moradora, sua classe ou status, assume também a feição da(s) moradora(s), seus gostos, preferências e estilos de vida. Cada detalhe pode trazer elementos que remetem, por exemplo, ao fato da moradora vir ou do meio rural ou do meio urbano. A própria disposição dos móveis obedece a uma primeira (e silenciosa) regra compartilhada: ou mantém-se a fileira de camas ordenadas, típica da caserna, ou as “véias” estudam em conjunto outro arranjo possível, segundo o espírito do acordo que se estabelecerá – que poderá ser mais ou menos harmônico, já que é feito entre três pessoas estranhas entre si e que habitam o mesmo minúsculo cômodo. Seja como for, é justamente nesta orientação subjetiva das moradoras que se estabelecem os sentidos da transformação daquele espaço num “lar”.


Ceuquianas em suas camas: intimidade possível. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.
 

Armário do alojamento. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005.
Local: Curitiba – BR.

Assim também é nas pensões e, principalmente, nas prisões. Contra a uniformidade que o sistema penal produz e impõe, cada “interno” (o eufemismo para o detento) ergue em sua cela seu próprio altar de objetos pessoais justamente para evitar o sacrifício do sujeito na massa carcerária. A estadia forçada num ambiente comum (comum aqui nos dois sentidos: compartilhado por todos e ao mesmo tempo banal, ou melhor, impessoal) é então ressignificada, mesmo provisoriamente. Aqui o que está em jogo não é somente o “seu” e o “meu” – o que denota a propriedade das coisas – mas também o “eu” – como expressão da identidade furtada.

Por outro lado, os aspectos simbólicos ligados ao espaço apresentam elementos que estão associados à inter-relação entre o comportamento humano e categorias espaciais.  Para Hall (1986:135) o comportamento humano não se restringe a tipos introvertidos e extrovertidos, autoritários e igualitários, apolíneos e dionísicos, mas da emergência de certo número de personalidades situacionais apreendidas, ajustando nosso comportamento  aos diferentes tipos de relações que mantemos no curso da vida: íntimas, pessoais, sociais e públicas.

 

A questão da privacidade é a que mais influi no impedimento da liberação da “subida” dos homens no edifício, visto que o espaço é extremamente restrito e comunitário. Ao saírem do banho, por exemplo, as meninas precisam atravessar todo o corredor para chegar ao quarto. Uma regra explícita da Casa é alertar, enfaticamente e sonoramente, que há “HOMEM NO ANDAR” quando se recebe alguma visita. De certa forma, o indivíduo, tal como se conhece no mundo moderno, fica, neste contexto, muito vulnerável. A fotografia da bailarina tenta representar esta máscara social, esta identidade forjada que transforma o indivíduo em persona: são estabelecidos tanto comportamentos padrão como formas desviantes desse padrão. O que permite também o surgimento de outra personagem na casa que é a “mocréia”: pejorativamente conhecida como a menina que policia e critica qualquer comportamento que seja diferente do que credita como moral, correto, honesto – assumindo o papel de vigilante das normas e da “boa conduta” das moradoras.

Assim, os limites entre a expressão do indivíduo e sua persona são constantemente confrontados. Por isso, a própria colcha da cama, a porta do guarda-roupas (que serve de painel para imagens que remetem a significados pessoais), cada espaço, por menor que seja, e que pertença provisoriamente a cada uma das ceuquianas é um local de demarcação e afirmação da identidade: ele funciona como meio de expressão de si, ponto de referência do presente recém adquirido e como repertório da memória pessoal do passado reconstruído.


Objetos e marcas pessoais. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005. Local: Curitiba - BR.
 

Limpeza solitária. Autora: Fábia Berlatto. Ano 2005. Local: Curitiba – BR.

É uma grande vantagem conseguir “subir” para o quarto com quem já houve troca de afetos no alojamento, porque num segundo momento, ou seja, “lá em cima”, é preciso ajustar-se não só com a “véia”, que já ocupa o quarto, mas com as demais moradoras do andar, já que a cozinha e os banheiros são comunitários. A transferência de um quarto para outro, de um andar para outro é mais ou menos constante, uma vez que as relações podem se desfazer e se refazer no decorrer da permanência na casa. Isso acontece também, porque a rotatividade de meninas é grande, pela conclusão da graduação ou melhoria na sua condição financeira, o que as possibilita alugar um imóvel.

As negociações necessárias para ocupar o quarto são diversas: qual e quanto espaço cabe a quem; se a delimitação será rígida (o que só se descobrirá com o tempo e com a ampliação, ou não, da intimidade entre as “véias”); os horários de silêncio, de estudo, de sono, de visitações; a divisão dos utensílios de cozinha (que geralmente cada uma traz de casa), dos alimentos; se as refeições serão feitas juntas ou separadamente; a limpeza e arrumação do quarto, e até mesmo dos espaços mais pessoais, já que tudo fica à mostra de todos, menos os objetos no interior do guarda-roupas.

Devido ao arranjo espacial e social da Casa, é de se esperar que o privado e o público se confundam e o segundo acabe superando e impondo-se ao primeiro. A privacidade implicada nos atos mais simples como tomar banho, fazer à toalete, dormir ou trocar-se é violada e exposta bruscamente e, na prática, oprimida pelo comunitarismo que torna a existência um exercício de representação – ou de construção de uma persona – pública.

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Ficha de registro das moradoras. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.

No primeiro ano, obrigatoriamente, as meninas, então calouras, devem ocupar-se das tarefas do departamento de Alimentação. No segundo ano é possível escolher o departamento que se deseja trabalhar, conforme a disponibilidade de vagas. No terceiro ano, é obrigatório candidatar-se para cargos da diretoria, conselho, tesouraria ou presidência e vice-presidência. No quarto, e, quem sabe, último ano de permanência na Casa, pode-se voltar a ocupar funções comuns. No departamento de Higiene e Saúde, por exemplo, as funções são a observância e vigilância da higiene dos espaços, a responsabilidade pela compra dos produtos de limpeza, a retirada do lixo para que ele seja recolhido pelo serviço público, a coordenação da escala de faxina e organização da cozinha etc. As decisões são tomadas em Assembléias e as tarefas são distribuídas e discutidas em reuniões de departamento.

A casa possui um Estatuto e Regimentos Departamentais. Os textos destes documentos foram pouco alterados desde a sua formulação, sendo sempre assunto de muita polêmica por serem considerados por muitas moradoras como ultrapassados, principalmente no que toca às regras morais adequadas. Deve-se considerar aqui a época em que a casa foi implementada, ou seja, é consoante com a moralidade e os costumes do início da década de 1960. Este fato gera muitos conflitos já que a Casa abriga meninas que vieram de várias localidades e que trazem uma carga cultural própria; a maioria veio do interior, ou seja, de uma sociedade mais tradicional, mais conservadora. Algumas se deslumbram com o fato de estarem “livres” na cidade grande, uma vez que este espaço representa para elas a esperança da emancipação. Outras mantém sua moral interiorana.  

 

Em alguns casos, o empenho e a necessidade de construção de um “lar” não deriva da condição feminina das moradoras, mas estão ligados à sua situação de forasteiras: quanto mais fortes forem os laços na “comunidade” de origem (no caso, a própria CEUC), mais oportunidades de serem assimiladas na vida universitária e se integrarem à vida longe de casa.

O “lar” também deve favorecer não só essa segurança psicológica (o sentido de proteção que deriva do apoio mútuo), mas o meio de identificação/diferenciação em relação ao mundo exterior. A transição, um tanto brusca, do Eu (o indivíduo) para um novo Nós (a comunidade das ceuquianas) adquire aqui um sentido positivo que em parte atenua a experiência da perda do modo de vida habitual herdado da família e/ou lugar de origem. Todavia, é impossível estabelecer um padrão fixo e uniforme das experiências pessoais na CEUC. Ser ceuquiana não é uma “distinção” que tem o mesmo valor e sentido para todas as moradoras. Muito pelo contrário: ela traz consigo também um conjunto de preconceitos. Por exemplo, há uma parte das meninas que afirmam o “ceuquianismo” como distinção. O orgulho da comunidade deve-se ao fato de terem objetivos comuns, origens parecidas, identificarem-se em sua condição de emigrantes. Além de serem todas estudantes universitárias. Mas por outro lado, há também o problema do estigma que gera uma distinção ao contrário. Morar na CEUC, hoje, é uma marca do lugar social que se ocupa, já que a Casa é um abrigo para estudantes em condição sócio-econômica “menos privilegiada”.

Há ainda o fato de que, apesar de ser um belo edifício modernista, seu interior estar bastante danificado pelo tempo, uso e transitoriedade das ocupantes, além da falta de manutenção.

Por último, não se pode discordar que não há muito do se orgulhar no fato de haver tão pouco espaço disponível para si. Existem então aquelas que negam sua condição de ceuquianas como forma de negar sua condição de “pobre”, sua origem social, para fugir deste estigma social.

Existem ainda aquelas jovens que têm dificuldades de construir sua identidade. Elas não têm uma relação nem de amor nem de ódio pela Casa. Seu vínculo é muito pragmático. Geralmente vêm de localidades próximas a Curitiba, o que possibilita que passem os finais de semana em casa com a família. Elas não constroem ligações fortes com as outras moradoras, não valorizam o espaço e geralmente retornam para sua cidade de origem assim que concluem o curso de graduação.

A assunção ou não da CEUC como um “lar”, disposição pessoal para viver a experiência da Casa como se esta fosse uma comunidade, pode refletir no ânimo com o qual se dedica ao cargo que se ocupará na gestão da instituição e na escolha do cargo pelo perfil das funções e do prestígio que ele exige.

A CEUC é auto-gerida. A administração da Casa se divide em sete departamentos: Alimentação, Higiene e Saúde, Obras e Melhoramentos, Social, Cultural, Alojamento e Financeiro.  Há ainda os cargos de Presidente e Vice-presidente, uma Diretoria Executiva, um Conselho Deliberativo e Fiscal e as Tesourarias, que representam cada um dos sete departamentos. Seus membros são escolhidos através de voto secreto em eleições anuais. Toda moradora deve responsabilizar-se por certas funções durante sua estadia na CEUC.

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O mais interessante é que grande parte do regulamento daquela época permanece vigente. De qualquer forma, existem alguns princípios que ainda vigoram  e orientam as possibilidades concretas das meninas entrarem ou não para a Casa, como o estabelecido no Artigo 2º de seu Estatuto:

A Ceuc tem por finalidade alojar, sem distinção de raça, ideologia ou religião, estudantes não domiciliadas em Curitiba, carentes de recursos financeiros, matriculadas na Universidade Federal do Paraná, oferecendo-lhes além de domicilio, ambiente propício ao desenvolvimento da personalidade e estímulo à solidariedade universitária2. Retirado do folheto relativo ao Culto Ecumênico dos 50 anos da CEUC – Curitiba, agosto de 2004 ..

A rotina das ceuquianas altera-se entre os dias de semana e os finais de semana, em tarefas fora da Casa (universidade, bolsa, emprego) e dentro da casa (obrigações com as funções e cargos ocupados, com seu quarto, com suas “veias”). Durante a semana cada uma tem sua agenda específica. Nos finais de semana a única opção doméstica de lazer é a oferecida pelo Departamento Cultural com a locação de filmes para exibição na sala de televisão. Cada menina arranja-se a seu modo e de acordo com suas condições, conforme sua inserção no mundo universitário (muitas freqüentam também o movimento estudantil) ou na própria cidade e em seus espaços tradicionais de lazer (bares, shows, festas etc.).


Cozinha comunitária. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.
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Lema da CEUC. Autora: Ana Sallas. Ano: 2005. Local: Curitiba – BR.



Por fim, a convivência que, ao menos no início, é involuntária e automática entre as ceuquianas, que exige concessões constantes para viver naquele espaço comum, dá lugar a uma solidariedade que não deriva exclusivamente das estratégias calculadas de sobrevivência no pequeno mundo da Casa. Estar ali é também uma ocasião para a construção de laços sociais e afetivos para a vida toda. Para a maioria das moradoras e ex-moradoras, a Casa é, ou mais exatamente, torna-se “um lar em terra estranha”, frase que é lema da CEUC e representa tanto um reduto que abriga suas expectativas quanto o lugar de promessa de novas oportunidades. Uma questão a ser explorada é o interesse, a necessidade e as estratégias para a construção de um (novo) “lar”, i.e., um ambiente ao mesmo tempo familiar e protegido, e não um microcosmo comunista derivado e imposto pelo igualitarismo forçado.

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Notas

1. A condição de gênero das duas pesquisadoras, ambas mulheres, observando, registrando e analisando a dinâmica de um alojamento feminino, ainda que importante, não será tematizada aqui.
2. Retirado do folheto relativo ao Culto Ecumênico dos 50 anos da CEUC – Curitiba, agosto de 2004.

Referências Bibliográficas

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