Comunicação, tradução e alteridade: imagens e pesquisa entre os Bororo do Mato Grosso, Brasil.

Os bororos têm uma longa trajetória de mais de um século de contato com a sociedade brasileira e sobre eles há uma produção antropológica extensa em que os aspectos da vida ritual são amplamente analisados. O funeral, nesse contexto, tem sido um elemento paradigmático e central para compreensão da sociedade bororo, mesmo se levarmos em conta as formas contemporâneas de relação e construção de sentido a que a sociedade bororo atual está submetida. As reflexões a seguir foram realizadas na busca de compreender e dar sentido para situações de diálogo intercultural, em que a experiência, as relações construídas, a partir do contexto de relações bororo, nos coloca a questão de pensar a comunicação como um campo fundamental para um melhor dimensionamento das possibilidades de compreensão mútua. Nesse caminho, experiências de uso do audiovisual associado ao trabalho de campo tiveram uma importância singular. O fazer audiovisual possibilitou a criação de um espaço de diálogo que por sua vez estimulava as várias leituras possíveis sobre a experiência do contato vivenciada pelos bororo. Processos dessa natureza permitiram reflexões sobre os lugares de enunciação dos discursos e ainda sobre os modos de constituição de narrativas sobre experiências de natureza intercultural, foco de nosso interesse aqui. Quando temos um sistema de relações constituído e que é intercultural, como no caso dos bororo, quais os problemas derivados desse contexto que interferem no processo de construção de sentidos e atribuição de significados para os sujeitos envolvidos? Creio que evocar um diálogo ocorrido em São Paulo no ano 2000, envolvendo dois bororos, possa trazer algumas questões a respeito.
Palavras-chave: Bororo, tradições indígenas, ateliê de tecnologias audiovisuais, alteridade, comunicação intercultural.

Autor:
Edgar da Cunha

Pesquisador do LISA – Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, da Universidade de São Paulo e Coordenador do Pós-Graduação em Cinema Documentário do CPDOC, na FGV - Fundação Getúlio Vargas.

e-mail:
etcunha@usp.br
Recebido: 3 de julho de 2006    Aceitado: 30 de setembro de 2006
 

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Esse diálogo aconteceu quando Eduardo e Américo, bororos da Aldeia Tadarimana no estado do Mato Grosso, vieram a São Paulo para confeccionar duas peças de sua cultura material para serem exibidas na exposição “Brasil 500 Anos”, uma enorme e ampla exposição comemorativa que tomava como efeméride a chegada dos portugueses ao “Novo Mundo”. O diálogo expõe uma pequena face de um processo mais amplo que envolve desde as formas de atribuição de sentido em situações de diálogo intercultural às formas de olhar, os diferentes pontos de vista e subjetividades mobilizadas e ainda o potencial criativo e expressivo proporcionado por essas situações.

O prédio que sediou o “módulo de Artes Indígenas” dessa exposição passou a ser chamado de oca a partir da realização da Mostra. Certamente, devido ao aspecto arredondado do edifício assemelhando-se ao formato de algumas casas indígenas, mas também por ser esse um termo muito utilizado pelo senso comum, em nossa sociedade, para designar habitação indígena, ou seja, um termo de origem tupi que assume o significado genérico de casa indígena, assim como “cacique”, “cocar”, “taba”, etc.

Ironicamente, a leitura bororo é bastante diversa, atribuindo um sentido àquele espaço ligado à sua experiência de contato e à sua forma particular de olhar o mundo dos “brancos”. Para eles, a Oca não era a “casa do índio” nem mesmo de forma alusiva, mas, pelo contrário, casa de “branco”, de “brae”, que, matreiro como a raposa, se apropria do mundo dos índios.

A mostra, aliás, era nesse sentido, bastante significativa, plena de objetos de grupos indígenas contemporâneos, mas de inúmeros outros que desapareceram ao longo dos séculos de contato e dos quais restavam apenas traços, todos devidamente “apropriados” pelos brae, termo que os bororo usam para se referir aos “brancos”.

Temos aqui um processo típico de devolução do olhar que permite relativizar o olhar de origem, evidenciando o potencial dialógico de processos de comunicação baseados no olhar e na imagem.

A tradição como construção

Outro aspecto importante, de questões envolvendo a visualidade, e que se estende a outros elementos do mundo bororo, refere-se aos elementos da cultura material, quando são transformados ou pensados nos termos de uma “cultura tradicional”, em especial quando mobilizados em situações de diálogo intercultural. Nessas situações esses elementos são fundamentais para construção de imagens e valores sobre os bororo que projetam uma imagem coletiva marcada por elementos “da tradição”, tão valorizada pela sociedade envolvente quando se trata de reconhecer uma identidade que não a sua.




Parque do Ibirapuera, São Paulo, 2000.
Américo: - como é o nome mesmo daquele lugar?
Edgar: - aquele prédio redondo?..... oca!
Eduardo e Américo: risos
Edgar: o que é tão engraçado nesse nome?!
Eduardo: porque só podia ser esse o nome da casa de brae, que é como okwa, a raposinha, muito esperta e matreira, como brae.....


Esse diálogo evoca situações típicas de contato intercultural em que o sentido do diálogo desliza e, em função de bagagens culturais diferenciadas, palavras, atitudes e gestos podem assumir os significados mais inusitados, dependendo do ponto de vista adotado na interlocução.

Em nosso caso, é importante perceber o ponto de vista bororo situado nesse contexto mais amplo de produção de representações que envolvem outros sujeitos com eles em contato e que definem o espaço possível de produção de modos de ver.


Américo e Eduardo e o cesto funerário que confeccionaram para a Mostra do Redescobrimento.

Temos aqui um processo de construção de uma identidade coletiva atrelada a fixação de elementos do mundo visível, das aparências, sem que se evidencie o componente subjetivo constituído pela forma de ver diferenciada do outro, muito menos de sua especificidade de se definir de forma relacional.

Como desdobramento dessa questão, temos ainda a apropriação de termos como “cultura” e “cultural” que assumem sentidos específicos quando mobilizados em situações de comunicação intercultural ou ainda algumas expressões como “capitão do cultural” que é utilizada pelos bororo para referir-se aos chefes de canto, os aroe etaware, fundamentais para a realização dos funerais.

Outro contexto comum da apropriação da idéia de cultura, expressa pelos discursos, é evidenciada pela fala dos mais velhos, quando criticam os jovens por não darem valor à “tradição” e ao “nosso cultural”.

A questão da autenticidade, da originalidade de elementos singulares que caracterizariam uma identidade é fundamental em um contexto em que a sociedade envolvente só reconhece como índio ou indígenas aqueles grupos que ainda mantém suas características pré-contato.

Assim, índios vestidos, que falam português, dirigem carro e utilizam celular seriam, na visão do senso comum, “índios aculturados”. É importante salientar ainda que julgamentos dessa natureza, em sua maior parte, levam em conta apenas elementos do mundo visível para serem formulados.

Por outro lado, temos um grande número de sociedades indígenas, em condições muito diversas de contato e com especificidades quanto aos problemas que enfrentam, mas que se vêem na contingência de confrontar questões como a exposta acima, construindo uma identidade para fora, que enfatize elementos do ser índio, ligadas a uma imagem muitas vezes do passado dessas sociedades. O que nos leva a pensar nesses processos de reelaboração e construção de elementos tradicionais como agenciadores de sentidos que são internos, mas também externos.

Muitos estudos construíram, de forma consistente, a questão do uso da tradição, de sua construção como forma de elaborar e justificar identidades coletivas. Penso, por exemplo, no livro de Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984) sobre a invenção das tradições e no de Benedict Anderson (1983) sobre comunidades imaginadas. Todos tratam de processos que buscam no passado as origens e justificativas de configurações do presente, de identidades coletivas.

Mas como podemos pensar essa concepção de tradições construídas, em que os elementos “cultura” e “identidade” são fundamentais?

Em nosso caso, tradição e cultura remetem a uma identidade compartilhada por parte de grupos clânicos, aldeias e conjuntos de aldeias que formam um coletivo que podemos nomear de “sociedade bororo”. Isso pressupõe um reconhecimento de formas de sociabilidade que se expressam nas relações de troca e reciprocidade e também a um compartilhar de um mesmo sistema cosmológico, o que significa, portanto referir-se a um conjunto simbólico comum.

A oficina de vídeo no Tadarimana

Nesse contexto, o vídeo se tornou um instrumento importante de exploração, permitindo uma outra via de acesso possível a essas representações construídas no e sobre o contato.

Em contextos de comunicação interétnica, a inserção de um instrumento totalmente construído em um dos pólos dessa relação, ou seja, da câmera de vídeo que vem da sociedade envolvente, não se realiza de forma neutra.

Mais do que um aparato técnico, ele é resultado de um longo processo de desenvolvimento de uma linguagem que é construída. Para que um resultado audiovisual tenha sentido para além das fronteiras do grupo, torna-se necessário o aprendizado e domínio não só da forma de utilização do dispositivo técnico, mas também de sua lógica e linguagem específicas.

O desafio inicial da oficina de vídeo foi possibilitar a dois jovens bororos um domínio do instrumento, pela compreensão de seu funcionamento e do seu manejo, mas também pelas formas possíveis de utilização, entrando em momentos posteriores em questões de linguagem.

Assim, tratamos de foco, necessidade de estabilidade ou não da imagem, luz, enquadramento e as formas de controlar esses elementos com base nos recursos da câmera
disponível. Nos exercícios práticos, Noel e Edson, os dois jovens bororos participantes da oficina, iniciaram a proposta de realizar uma descrição de ações por meio das imagens, partindo de temas por eles escolhidos, até chegarem à realização de entrevistas e depoimentos.



Edson em ação com sua câmera na Aldeia Tadarimana.

Trabalhávamos em um período do dia e iniciávamos com base em alguma proposta que pudesse ser realizada em um espaço de tempo limitado e na aldeia. Um dos exercícios propostos foi o de “contar” por intermédio da câmera algum processo que acontecesse cotidianamente na casa de cada um deles e de livre escolha.

Era um esforço em narrar, para alguém que não conhece a vida dos bororo, um pouco do seu dia a dia e de sua vida doméstica. Noel gravou sua irmã preparando o almoço na cozinha no fundo de sua casa, ela envergonhada e ele brincando do seu jeito contido. Edson nos mostra sua casa, os objetos que estão espalhados pelo jirau, os troféus conquistados em jogos de futebol, os desenhos na parede de personagens míticos dos xavantes. A seguir, chega sua mãe vinda da cidade e carregada de compras. Naquele dia, tiveram um jantar especial, com carne de boi e muito arroz bem temperado.

Depois da gravação, assistimos a tudo em uma televisão na escola, onde montamos nosso espaço de trabalho da oficina, com uma televisão e videocassete.

Durante a apreciação, conversávamos sobre o resultado, sobre a forma de gravação, sobre os problemas e qualidades das imagens produzidas. Fomos cuidadosos no sentido de não impor, unilateralmente, uma forma fixa de realização do vídeo, mas discutíamos determinados resultados, se eram desejáveis ou não de acordo com o interesse deles, e formas alternativas de gravação de determinadas situações mais difíceis de abordar com a câmera, como questões de captação de som, contra-luz, etc.

No dia seguinte, propusemos a realização de entrevistas, com a escolha de pessoas e de temas livres. Noel teve dificuldades em concretizar a proposta e Edson a realizou de forma bastante satisfatória. Ele gravou uma entrevista com José Carlos, também conhecido como Formigão, que vinha de outra aldeia, chamada Garças, desde há pouco tempo e pretendia passar uma temporada no Tadarimana. Ele, já versado na interação com a câmera, fez um discurso nostálgico, típico de um homem mais velho para um jovem de valorização de um passado que não permanecera. No entanto, pelas imagens percebemos que seu depoimento não era endereçado apenas ao jovem que o filmava, mas sim ao mundo dos “brancos”. José Carlos, no interior de sua casa, mostra para a câmera alguns adornos plumários bororo e tece alguns comentários:

- Eu não sei como branco trata esse enfeite. Nós mesmos fala kioguaro (bracelete de penas). Nabure....penas de arara vermelha e amarela...aqui também tem kuruguga ioaga, (penas de) gavião. Esse kioguaro tem muito, para cada clã tem. Esse clã aqui (mostrando para a câmera) é Arore, esse também é Baadodjeba......Apiboregue. E o pariko? (diadema de penas) Não sei onde foi parar o pariko....ficou lá?!
- Cocar
! Diz que pariko chama cocar....criação de braido!
-Ih! Tinha muito tradicional, muito enfeite dos bororo, mas bororo está acabando! Então todas as coisas todas as leis estão apagando, estão consumindo. Tem algum que tem, pouco tem, muito não tem
”.

A situação descrita nos indica que estamos diante de um desafio típico de processos de tradução no qual, para que se construam canais de comunicação, que preservem um mínimo de inteligibilidade mútua, é necessário o domínio de códigos dos dois sistemas e a criação de equivalências de termos e de sentido.


A conjunção dessas alternativas tem, a meu ver, propiciado a construção de uma percepção aproximada de um ponto de vista bororo, em relação aos outros sujeitos com eles relacionados, como os Xavantes e Terenas, os Salesianos, a FUNAI e o entorno urbano cada vez mais presente. Mas, também, das imagens construídas sobre eles e de como elas conformam as relações de diálogo.

Essas situações também nos permitem problematizar a questão do acesso ao ponto de vista do outro, que a meu ver realiza-se sempre por aproximações e em geral parte da idéia de um coletivo, de um “nós” bororo que é construído e convencional, muitas vezes mascarando uma pluralidade interna de pontos de vista, de coletivos de outra natureza como o da solidariedade clânica. Esse coletivo bororo deve ser matizado, levando-se em conta as relações entre as várias áreas bororo, que, em certas circunstâncias, não permitem a construção de um ponto de vista bororo único, mas de variações que em alguns momentos podem ser aproximadas.

Outro desdobramento possível é o de pensar a relação entre produção de imagem e auto-imagem e identidade como uma relação que não é unívoca e mecânica, mas uma possibilidade, dependendo da forma como se utiliza o vídeo e dos processos a ele associados. Penso que o potencial desse dispositivo técnico está na sua inserção de forma orgânica em processos nos quais ele seja elemento constitutivo. O lugar da câmera não deve ser apenas o do agente que constrói sua representação por meio de um olhar externo sobre o mundo, mas sim se constituir ela mesma o lócus privilegiado dos processos, evidenciando, dessa forma, as ações e sentidos construídos com a presença do aparato técnico.


José Carlos em sua casa no momento da entrevista gravada por Edson.

Vídeo e etnografia

Mencionei, até aqui, apenas uma das formas de utilização do vídeo na pesquisa, mediante a realização das oficinas. O fato de dois jovens bororos poderem produzir imagens, nos coloca a possibilidade inicial de acesso ao processo de realização e, portanto, a todos os elementos em jogo nesse contexto, mas também possibilita a análise do material produzido.

A outra experiência consistiu na produção de imagens realizadas por mim durante a pesquisa de campo. Esse caminho criou outras formas de relação com o contexto de produção de imagens no interior do grupo.

A aparente autonomia do antropólogo em campo na realização de seus registros, como, de forma similar, a escritura do caderno de campo pode sugerir, vai aos poucos sendo relativizada. A câmera é aceita inicialmente em contextos específicos, em geral ligados à vida pública bororo. Interesses de registro começam a se materializar em pedidos de gravação de situações rituais, do “nosso cultural” dizem eles, e de alguns trabalhos coletivos, como a reforma da casa central, o bai mana gejewu, iniciada a partir do momento em que a possibilidade de gravação se concretizou. Começam a acontecer, portanto, situações em que, nitidamente, existe uma mis-en-scéne para a câmera. Constroem-se inúmeros desafios que poderiam ser resumidos na necessidade de compreensão dos processos estimulados, catalisados ou inibidos pela inserção da câmera.

O lugar da observação também passa a ser problematizado. Acostumados à “tradicional” observação participante, como um dos instrumentos à mão no trabalho de campo, com a câmera esse lugar é modificado. A moldura do visor da câmera de vídeo, a necessidade de atenção a elementos de linguagem como duração da ação, continuidade, variação de planos (se o que se tem em vista é uma edição posterior e não apenas a produção de material bruto para análise) são elementos que podem ou não se somar ao interesse mais estritamente etnográfico da observação.

Foram realizados cinco períodos de pesquisa de campo entre os bororos da área indígena. Em geral, nas gravações, acompanhei grupos de bororos em atividades rituais, cotidianas e em várias outras relacionadas ao contexto político e de relação com elementos externos à aldeia.

O material gravado compõe-se, em sua maior parte, por imagens do funeral, focalizando diversos momentos desse complexo ritual, que muitas vezes pode durar até três meses e é composto de uma infinidade de festas realizadas entre o enterramento primário e o definitivo dos ossos. Ritos como Tamigi, Mano, Parabara, Tóro, Iwodo, Caiwo, além de pescarias, viagens, cantos e outros elementos do ciclo ritual do funeral fazem parte do material gravado. Imagens de viagens à Rondonópolis, aspectos da vida cotidiana, reuniões políticas com a FUNAI, com a organização não-governamental “Trópicos”, responsável pela saúde na área, etc, também foram captadas.

Em outros momentos, tive a oportunidade de observar situações especiais como o evento comemorativo realizado na aldeia bororo, situada na área indígena Meruri, próxima à cidade de Barra do Garças, no Mato Grosso. O evento, promovido pelos padres salesianos, que mantêm uma missão junto àquela aldeia, rememorava “os 25 anos do martírio do Padre Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo”. Reuniu lideranças de várias outras áreas bororo, como Tadarimana, Piebaga e Córrego Grande, além de pessoas ligadas ao contexto político e imprensa local e outros ligados à cidade de Barra do Garças. Esse momento mobilizou e atualizou uma série de significados simbólicos da experiência coletiva e histórica dos sujeitos envolvidos.

Esse foi um marco significativo do engajamento salesiano na causa bororo, e exemplar quanto a uma nova forma de relacionamento e atuação da missão, se levarmos em conta todo um passado de quase um século, até aquele momento, de atuação junto aos bororos, de marcada repressão ao modo de ser tradicional mediante um projeto civilizatório e de assimilação dos bororos à sociedade nacional. O martírio passa a ser a idéia que liga os salesianos aos bororos e, nesse evento, esse sentido é explicitamente construído.

A idéia de martírio como foco aglutinador e demonstrativo do vínculo entre os salesianos e os bororo é evidente. A missa católica realizada em bororo, com a incorporação de vários elementos bororo na liturgia, novamente celebrada por Padre Ochôa. A evidente intencionalidade na projeção de imagens para um contexto mais amplo, provavelmente com sentidos diferentes para os bororos e salesianos.

Creio que visibilidade é a palavra central nesse momento de atualização de sentido, da memória de experiências compartilhadas. Muitos representantes da cidade estavam lá: um ônibus escolar veio repleto de estudantes de Barra do Garças, políticos locais, religiosos de Cuiabá, a capital do estado, a televisão local, intelectuais e, é claro, antropólogos.

Mais uma evidência disso foi, nesse contexto, a inauguração de um Centro Cultural e Museu Bororo na missão. A aldeia do Meruri, diferentemente das outras aldeias bororo, é em formato quadrangular, sendo que a parte ocupada pela missão salesiana fica em um dos lados desse quadrado. Aí situa-se o Museu e Centro Cultural inaugurado na ocasião e que tem como objetivo “revitalizar” a cultura bororo. Elementos da cultura material bororo estão expostos, uma biblioteca e centro de documentação foram disponibilizadas e a idéia de “preservação cultural” é enfatizada e oferecida de forma evidente.

Em eventos como esse, a visibilidade é um foco importante e muito do que é encenado visa uma divulgação em contextos mais amplos, ultrapassamos a mera idéia de registro, na medida em que a câmera potencialmente pode também ser “objeto”, foco e catalisador de situações, no processo em desenvolvimento.

A gravação, em vídeo, do funeral, em uma primeira análise, me permite indicar alguns elementos e questões. O primeiro destaque a fazer é a evidente intencionalidade nas atitudes
quando o que está em jogo é um processo de projeção de imagem para fora dos limites da aldeia.

Não apenas nas situações estritamente políticas, mas, principalmente, nas situações rituais, há uma evidente mobilização para a câmera no sentido de fixar os elementos por eles considerados como desejáveis para associar à sua imagem coletiva. Dessa maneira, o que temos é a construção de uma idéia de identidade ligada à tradição, como uma reação às expectativas do mundo envolvente em relação a eles. A percepção de uma identidade indígena “no mundo dos brancos” passa pela idéia de permanência de uma tradição que se expressa basicamente pela visualidade, de elementos diacríticos associados ao corpo, e de manutenção de “ritos e costumes” típicos de sua vida ritual.

Há, ainda, a idéia de construção de um repertório de memória, gravando-se rituais e cantos como forma de preservá-los para o conhecimento futuro. Nos discursos sobre o vídeo, afirma-se até mesmo que ele pode subsidiar experiências de aprendizado na escola bororo, como elemento multiplicador do conhecimento tradicional no contexto escolar.

Em contraste a esses discursos, observamos críticas à utilização da escola para esse fim, pois ela seria um espaço para aprender “coisas de branco”. Saber contar e ler são habilidades fundamentais para a relação dos bororos com o mundo envolvente e a escola seria o lugar privilegiado para isso.

O professor não pode ensinar coisas “do cultural”, pois ele ou ela tem um conhecimento restrito e parcial e esse aprendizado realiza-se mediante a participação nas atividades rituais e no exercício dos papéis e funções destinados a cada indivíduo bororo.

Esse cenário e as situações descritas expressam, a meu ver, o potencial de produção de imagens e de formas de ver ligadas à compreensão desses inúmeros eventos em situações de diálogo intercultural.

Contato, comunicação e alteridade

A abordagem de fenômenos étnicos não se restringe a práticas conscientes de construção de identidades em contextos de reivindicação e projeção de demandas e também não se esgota na análise das relações desses grupos com o “mundo dos brancos”.

A construção de pertencimentos coletivos tem um aspecto interno ligado a um conjunto de valores e formas de pensar compartilhados e têm ainda um aspecto político ligado às formas como o poder se expressa no sistema de relações.

Assim, pensar sobre a alteridade e identidade é pensar em uma experiência coletiva que se expressa como um fenômeno tanto cultural como político e que dependem da compreensão de um contexto ampliado de comunicação e das diversas formas concebidas de alteridade

Pensemos na figura do xamã que atua, principalmente no contexto amazônico, como elemento estratégico na construção de relações com os elementos de alteridade, estabelecendo alianças e controlando forças potencialmente destrutivas ao contexto social local.

Ele deve ser capaz de manipular e controlar forças que representem risco à coletividade restabelecendo o equilíbrio entre os homens e suas figuras de alteridade, como outros índios, não índios, brancos, não humanos, etc. As formas sociais e relações devem ser constantemente atualizadas e refeitas no interior dessas engrenagens miméticas de negociação da realidade com subjetividades outras em contextos rituais.

Um índio que transite nesses diferentes contextos de contato na verdade se movimenta entre universos semânticos distintos. Como nos contextos políticos em que lidam com as diversas agências públicas como FUNAI e FUNASA, instituições de âmbito municipal, estadual e federal, etc. em que operam mecanismos de comunicação e poder com origem no “mundo dos brancos”.

O caráter mimético dos rituais remete a uma poética, a um poder criativo enquanto mobilização de um repertório comum, e das possibilidades que eles encerram. Nos rituais, os procedimentos simbólicos com encenações de narrativas cujos personagens em grande parte tem origem em uma cosmologia local, não podem ser compreendidos apenas como representações de um passado mítico que é periodicamente atualizado, mas como formas de comunicação com um mundo intersubjetivo primordial de seres que torna possível assumir outros pontos de vista.

Estes xamãs são, com freqüência, descritos como especialistas na arte da metamorfose, em transitar pelas fronteiras das diversas configurações do ser, reformulando o imaginário do contato, articulando significados de diferentes origens. Dessa forma não faria sentido simplesmente distinguir elementos “indígenas” dos “brae”, os “tradicionais” dos “contemporâneos”, os “internos” dos “externos”, os “originais” dos “assimilados”.

O xamã seria um tradutor, que está aberto para outros horizontes de compreensão do mundo (Carneiro da Cunha, 1999). A sua tarefa é intervir nestes espaços intersubjetivos, repletos de perigo e de forças potencialmente destrutivas, em benefício da sua coletividade de origem. Daí provém o seu reconhecimento social. No exercício do seu ofício de conectar o local com forças globais ou cósmicas, ambos correm o risco extremo de transformar-se definitivamente no Outro.

Estas duas esferas de poder e conhecimento imbricam-se em determinados contextos. Em torno do princípio dialético bope/aroe, forças perigosas e potencialmente destrutivas com as quais os humanos interagem, emergem representações sobre o passado e o presente, sobre “tradição” e “modernidade”, “indianidade” e “civilização”, cuja dinâmica de articulação configura as categorias espaciais interdependentes de “aldeia”, “comunidade” e “cidade” no imaginário interétnico regional.

Conforme Barth (1989), os fluxos de significados e processos sociais nos quais os sujeitos fabricam simbolicamente a realidade geram combinações imprevistas, inovadoras, variadas e até contraditórias de elementos de tradições culturais distintas. A coerência das representações é elaborada pelos próprios sujeitos, condicionados pelos seus pertencimentos coletivos e pelas suas trajetórias biográficas, nos seus empreendimentos cognitivos para dar sentido às situações específicas de interação.

Considerando que a unidade do grupo é construída no campo da enunciação, no ‘terceiro espaço’ onde são enunciadas as diferenças culturais, construir as fronteiras onde se insere o grupo é ponto de partida.

A intervenção do terceiro espaço de enunciação, que torna a estrutura de significação e referência um processo ambivalente, destrói esse espelho de representação em que o conhecimento cultural é em geral revelado como um código integrado, aberto, em expansão. Tal intervenção vai desafiar de forma bem adequada nossa noção de identidade histórica da cultura como forma homogeneizante, unificadora, autenticada pelo passado originário mantido vivo na tradição nacional do povo (...) É apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos a compreender porque as reivindicações hierárquicas de originalidade ou ‘pureza’ inerentes às culturas são insustentáveis” (Bhabha, 1998, p.67).

As formas de representação que estas sociedades constroem para dialogar com as múltiplas formas de alteridade são um campo privilegiado para novas abordagens da etnicidade e da "fronteira", conforme abordagens propostas por Appadurai (1996) e Bhabha (1998). Em suas análises de movimentos étnicos e/ou culturalismos da modernidade, esses autores pretendem escapar da dicotomia "dentro/fora" que o argumento "primordialista" da identidade nos impunha.

Para melhor entendermos a articulação entre fatores translocais e fatores locais, os estudos sobre o tema deveriam considerar a produção da diferença cultural como "objeto consciente" (Appadurai, 1996) ou como processo de significação produzido no contexto de "traduções nativas" da diferença cultural, abrindo, como sugere Bhabha, "um outro lugar cultural e político no cerne da representação colonial". Isso permitiria ultrapassar o debate entre posturas "internalistas" ou "externalistas", abrindo um outro foco de discussão, em torno da distinção entre "diversidade" e "diferença".

Cabe ao etnólogo redefinir, como propõe Marcus (1991), o observado em termos de vozes, espaço e tempo e ao mesmo tempo em que o observador também se redefine. E para tal temos que ter um instrumental que nos permita perceber essa multiplicidade de intercâmbios e trocas entre diferentes segmentos culturais.


Creio que deveríamos pensar, como sugere Carneiro da Cunha (1999), que os processos de inserção de comunidades locais em sistemas globais não levaria a um inexorável movimento de homogeneização cultural. Apesar das relações de força evidentemente desvantajosas para os grupos locais, o que podemos observar a partir dos contextos e situações tratados neste texto nos permite perceber com clareza que essa perspectiva não dá conta dos problemas de construção de sentido, que sempre se realizam localmente.

Para compreensão das possibilidades de construção de sentidos, de traduções em experiências coletivas de caráter intercultural, temos que necessariamente perceber como isso se realiza localmente. E nesse caminho creio que a figura do xamã como aquele que traduz “o desconhecido em compreensível” devido a sua capacidade de assumir o ponto de vista do outro, pode ser uma chave importante para compreensão de processos dessa natureza.

 

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